Cidades do Evangelho (1)

Francisco Muniz

Como sabemos, a Doutrina Espírita teve sua gênese na França, espalhando-se depois por todo o mundo graças ao trabalho exemplar de Allan Kardec e seus colaboradores, simpatizantes do ideal cristão, do qual o Espiritismo é o prosseguimento natural. Essa colaboração na tarefa do Codificador, à semelhança do que o Espírito de Verdade comenta no Prefácio de O Evangelho Segundo o Espiritismo, afirmando que "os Espíritos do Senhor se espalham sobre todos os pontos do mundo", verificou-se também fora da França e do próprio continente europeu. Assim é que mensagens vindas da Argélia, então uma colônia francesa na África, bem como da Alemanha, da Polônia, da Suíça e da Bélgica constam das Instruções dos Espíritos que Kardec apresenta na terceira obra da Codificação, que em 2024 completa seus 160 anos de lançamento. Com a finalidade de continuarmos enriquecendo nossa cultura espírita, voltamos nossos olhos, agora, para as cidades que, pelas razões acima, têm alguma importância na disseminação dos postulados do Espiritismo, conforme a determinação do Cristo aos discípulos de todos os tempos: "Ide e pregai!"

1. Argel



A capital da Argélia, país africano, ganha relativa importância na Codificação Espírita, especialmente no tocante a O Evangelho Segun do o Espiritismo, por dois motivos. O primeiro deve-se à mensagem do Espírito Fénelon, lá ditada no ano de 1860 e que Kardec aproveitou nas Intruções dos Espíritos do Cap. XVI, intitulado "Servir a Deus e a Mamon". A dita mensagem versa sobre o emprego da fortuna e nela Fénelon concloma os espíritas para a necessidade de se trabalhar o desapego, ante a inevitabilidade da prestação de contas quanto aos recursos que a Divindade nos granjeia para a prática da caridade. Fénelon, contudo, faz um apelo assaz judicioso: "A todos os que podem dar, pouco ou muito, direi, portanto: Dai esmolas quando necessário, mas, o quanto possível, convertei-a em salário, a fim de que aquele que a recebe não tenha do que se envergonhar".

O outro motivo é que, dois anos depois do auto de fé de Barcelona, de 1861, o segundo bispo de Argel, monsenhor Louis Antoine Parvy (ou Parvie, conforme anotou o Codificador), fez publicar, a 18 de agosto de 1863, "uma brochura dirigida aos senhores curas de sua diocese, sob o título de Carta circular e pastoral sobre a superstição dita Espiritismo", na qual interdita a Doutrina Espírita na Argélia. Citamos as passagens seguintes, acompanhadas de observações. De acordo com esse bispo, “...Tínhamos pensado em adicionar modesta página a estes luminosos anais, empalidecendo, das alturas do bom-senso e da fé, como o merece ser, o Espiritismo que, renovado da mais velha e mais grosseira idolatria, vem abater-se sobre a Argélia. Pobre colônia! Após tão cruéis provas, ainda lhe era necessária uma deste gênero!”

Kardec, porém, pondera: "Pobre colônia! Com efeito, não seria ela muito mais próspera se, em vez de tolerar e proteger a religião dos indígenas, se tivessem transformado suas mesquitas e sinagogas em igrejas, e se não tivessem detido o zelo do proselitismo! É verdade que a guerra santa, guerra de extermínio como a das cruzadas, duraria ainda, se centenas de milhares de soldados tivessem perecido e se talvez tivéssemos sido forçados a abandoná-la. Mas, que é isto quando se trata da vitória da fé! Ora, eis aqui um outro flagelo: o Espiritismo que vem, em nome do Evangelho, proclamar a fraternidade entre os diferentes cultos e cimentar a união, inscrevendo em sua bandeira: Fora da caridade não há salvação."

E diz mais o Codficador, antevendo as consequências das imprecações do clérigo, para quem a Doutrina dos Espíritos não passava de charlatanismo: "Se o próprio nome do Espiritismo é desconhecido no maior número das pequenas cidades e nos campos da Argélia, a carta circular do Sr. Bispo de Argel, espalhada em profusão, é um excelente meio de torná-lo conhecido, despertando a curiosidade que, por certo, não será detida pelo medo do diabo. Tal foi o efeito bem verificado de todos os sermões pregados contra o Espiritismo que, de notória publicidade, contribuíram poderosamente para multiplicar os seus adeptos." Em sua resposta, publicada na Revista Espírita de 1863, Kardec indaga se a carta do bispo teria efeito contrário ao de seus pensamentos. E conclui: "É mais que duvidoso. Lembramo-nos sempre desta palavra profética, tão bem realizada, de um Espírito a quem perguntávamos, há dois anos, por que meio o Espiritismo penetraria nos campos. Ele nos respondeu:
─ Pelos padres.
─ Voluntária ou involuntariamente?
─ A princípio, involuntariamente. Mais tarde, voluntariamente."

Os detratores, portanto, fazem sempre a melhor propaganda do Espiritismo, conforme o Codificador expõe em Obras Póstumas. Por essa razão, Kardec salienta: "Lembraremo-nos ainda que, quando de nossa primeira viagem a Lyon, em 1860, os espíritas ali eram apenas algumas centenas. Naquele mesmo ano um sermão virulento foi pregado contra eles e nos escreveram: “Mais dois ou três sermões como esse e em breve seremos decuplicados.” Ora, os sermões não têm faltado naquela cidade, como se sabe, e o que todos sabem, também, é que no ano seguinte havia cinco a seis mil espíritas, e que a partir do terceiro ano, contavam-se mais de trinta mil. Pobre cidade lionesa! O que se sabe, ainda, é que o maior número de adeptos se encontra entre os operários, que nesta doutrina encontraram forças para suportar pacientemente as rudes provas que atravessaram, sem buscar na violência e na espoliação o necessário que lhes faltava. É que hoje oram e creem na justiça de Deus, já que não creem na dos homens; é que compreendem a palavra de Jesus: “Meu reino não é deste mundo.”

O artigo de Kardec na Revista Espírita de 1863 é bastante extenso e cremos poder parar por aqui, uma vez que os interessados podem sempre recorrer àquela puclicação, a fim de mais e melhor se esclarecerem. Salientamos, contudo, que, assim como na França pós-Kardec, o Espiritismo em território argelino perdeu força ante o avanço do islamismo, religião que engloba mais de 96 por cento da população local, enquanto o cristianismo do bispo Parvy representa hoje apenas 0,3%; quanto às outras correntes religiosas - aí incluindo a Doutrina Espírita, por certo - elas somam apenas três por cento.

Comentários

  1. Excelente trabalho, Chico. Vou procura, na revista espírita, para ler a carta de Kardec, na íntegra.

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