Galeria da mediunidade - 184

Maicon Schlosser

MILAREPA



Jetsün Milarepa não é uma figura muito conhecida fora dos círculos budistas, mas no Tibete, seu país de origem, ele é exaltado da mesma maneira e com tanta intensidade quanto Jesus Cristo em países ocidentais. Sua fama vem de sua vida errática, mística e inspiradora. Uma de suas particularidades era o uso de poemas em formato de canções que ele cantava às mais diferentes pessoas, com o intuito de fazer com elas compreendessem de maneira simples conceitos budistas muitas vezes complexos. É dito que todos aqueles que o ouviam, tornavam-se praticantes budistas. No Brasil, o livro “Milarepa, A História de um Yogi Tibetano”, escrito por W. Y. Evans-Wentz, lançado pela Editora Pensamento, é a única fonte bibliográfica de sua vida e foi através dele que conheci sua fascinante história. Infelizmente, a maior parte de sua obra, que conta com um acervo de 100 mil canções/poemas, permanece restrita aos tibetanos e às pouquíssimas traduções internacionais.

Na língua inglesa, há um número maior de obras sobre sua vida e seus ensinamentos, sendo algumas traduzidas diretamente do tibetano. Uma delas, organizada pelo site Buddha Net e traduzida por Garma C. C. Chang, compila 60 canções do mago e santo tibetano. Uma leitura riquíssima, o livro traz ao público o coração dos ensinamentos deste importante meditador solitário e excêntrico. Em formato de poemas, Milarepa prega o Dharma* para as mais diferentes pessoas, de emissários de importantes reis até a caçadores rudes. O que salta aos olhos do leitor é a maneira como ele adapta o seu discurso às mais diferentes ocasiões e pessoas, além da maneira muitas vezes provocativa e direta com que Jetsün se dirigia aos seus ouvintes.

Fascinado com seus poemas & canções, decidi traduzir o livro inteiro ao português e trazer assim, um pouco mais dessa figura tão emblemática para a nossa língua, enquanto espero por uma tradução profissional vinda do alguma editora brasileira. Mais do que um desafio, traduzir o livro foi também um modo que achei de me manter ocupado e de preservar minha saúde mental durante a pandemia. Posso dizer que, após dois meses, cheguei a um resultado satisfatório, embora certamente distante do trabalho de um tradutor profissional. Foi uma trabalho realizado apenas pela força de vontade e o desejo de compartilhar o que tanto me foi benéfico. Traduzi-lo foi também uma maneira de compreender mais profundamente toda a sabedoria contida nas palavras desse grande mestre budista.

A vida de Jetsün Milarepa, assim como a de muitas importantes figuras religiosas, foi intensa e cheia de altos e baixos. Nascido no seio de uma rica família de camponeses, por volta de 1040, o jovem Tubhaga, como era conhecido, aprendeu logo cedo uma importante lição sobre a impermanência. Seu pai faleceu precocemente, partindo sem preparar um testamento. Dessa forma, as riquezas da família foram apropriadas por seu tio, que nunca repassou um tostão do dinheiro a Milarepa e sua família, que passaram então a serem meros servos de seu tio, que os tratava de maneira desumana e humilhante.

Após uma infância miserável, marcado por maus tratos, como se alimentar muitas vezes de restos de comida que eram oferecidos apenas aos cachorros, sofrer de graves problemas de saúde, devido ao frio intenso do inverno tibetano — é dito que o tio não os deixava entrar em casa e os obrigava a trabalhar mesmo sob temperaturas abaixo de zero — o jovem cansou e decidiu vingar-se.

Para isso, foi atrás dos mestres de magia negra tibetanos, que lhe ensinaram as artes mágicas do Tu, Ser e Ded. Em pouco tempo, Milarepa aprimorou tais artes e através dela trouxe grande desgraça e sofrimento àqueles que haviam tornado sua vida um inferno. Através de fortes feitiços, o jovem mago trouxe tempestades enormes ao vilarejo de seus tios, causou terremotos, chuvas de pedra etc., sendo que no fim tinha sob seus ombros o peso de algumas dezenas de mortes. Após isso, Milarepa aprendeu outra lição: sua vingança, apesar de bem sucedida, não trouxe de volta o seu pai e sua riqueza, não eliminou seu ódio e dor, apenas o tornou mais miserável.

Profundamente arrependido, Milarepa, como descreve no poema acima, foi atrás de Marpa (O Tradutor), grande mestre responsável por trazer o Budismo ao Tibete, pedir sua instrução e ajuda. Conta-se que Marpa o recusou nos primeiros encontros, alegando que o jovem Milarepa não possuía o necessário para ser um de seus discípulos.

Com insistência, Milarepa conseguiu amolecer o coração de Marpa, fazendo com que ele considerasse sua aceitação como discípulo. Mas, para isso, ele teve de passar por diversos testes e provações, que incluem a famosa anedota “da construção de nove casas”. Cada vez que Milarepa terminava de construir uma casa, Marpa, alegando não se lembrar de ter ordenado a construção ou usando de outra desculpa, apenas para testar seu comprometimento e resiliência, pedia para que Jetsün a colocasse abaixo. E assim Jetsün fazia, destruindo a casa que tanto trabalhara para construir, para logo então começar a construir outra, dessa vez sob ordens de Marpa, que dias depois, com a casa pronta, repetia a ordem de colocá-la abaixo. Após a incessante provação, que duraram meses e resultaram em nove casas construídas e derrubadas, Milarepa chegou a um estágio de profundo desespero, em que não acreditava mais ser possível receber os ensinamentos de Marpa. Somente quando já estava completamente desiludido e a caminho do suicídio, Marpa o aceitou como discípulo. Assim começava a vida espiritual de Milarepa, que culminaria na obtenção do mais alto grau de Iluminação, a superação da dualidade, do bem e do mal, o completo e verdadeiro Nirvana.

Esse é um breve resumo do começo da história de Milarepa, de sua vida antes de se tornar o grande Iogue* tibetano, que meditou em sua caverna por 12 anos até atingir a Iluminação. Para ler mais sobre sua vida, recomendo sua biografia, que pode ser encontrada sem dificuldade em pdf. Sites budistas, como o Sobre Budismo, também apresentam um resumo técnico de sua vida. Agora, é minha intenção, que aqueles que desejem ir mais a fundo em sua história, leiam o livro que traduzi com muito amor e dedicação, pois através dele é possível ter uma visão mais ampla da vida de Milarepa, que ultrapassa os detalhes biográficos e vai ao centro de suas experiências e ensinamentos. Muitas deles podem pegar o leitor desprevenido, o estilo direto e franco do Jetusün é uma de suas particularidades, tornando seus poemas em formato de canções (ou vice-versa?) em algo íntimo, que mexe com o leitor de maneira única.

(Fonte: https://maiconschlosser.medium.com/)

(Trilha sonora: "Keep on sunny side", The Whites)

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