Francisco Muniz -
O capítulo 23 do Evangelho de Lucas começa sob a epígrafe “Jesus perante Pilatos” e é em seu terceiro versículo que encontramos o tema de nossos comentários deste dia 23 de março, o que faremos sob a inspiração da Doutrina Espírita. O texto, copiado da Bíblia de Jerusalém, traz esta redação:
“Pilatos o interrogou: ‘És tu o rei dos judeus?’
Respondendo, ele declarou: ‘Tu o dizes’.”
Na qualidade de profissional da comunicação, desenvolvi o
gosto pela observação das peculiaridades linguísticas, no caso, da língua
portuguesa, nosso vernáculo, de modo que tento me aperfeiçoar na interpretação
dos textos tanto escritos quanto verbais, por entender que nisso está o segredo
do discernimento que leva à boa compreensão do que se ouve e diz. É o que
ressalta da apreciação desse encontro entre Pôncio Pilatos, governador da
Judeia naquele período importante da história judaica e da Humanidade, e Jesus
de Nazaré, aprisionado pelos sacerdotes e levado a julgamento. Tal se deu
porque os integrantes do Sinédrio (*) não tinham autonomia jurídica para condenar
ninguém à pena capital, submetendo-se assim à autoridade do invasor romano.
Desse modo, ouvindo a resposta do Messias acusado pela
intransigência dos fariseus, Pilatos interpreta, acertadamente, essa fala como
a negação de sua pergunta, porque, hoje convimos, tal não correspondia à
verdade. Não se deu o mesmo, contudo, quando do interrogatório do Justo no
Sinédrio, quando os astuciosos fariseus, mancomunados com os escribas, questionaram
Jesus se ele era o Filho de Deus. Em resposta, o Mestre, adotando o mesmo tom
assumido junto a Pilatos, declarou: “Vós dizeis que eu sou!”, mas a reação dos
acusadores destoou completamente da interpretação do representante do Império,
porquanto se exaltaram: “Que necessidade temos ainda de testemunho? Ouvimo-lo
de sua própria boca!” (**) – manifestando dessa maneira a estranha arte de
manipular as palavras ao bel prazer, de acordo com os interesses defendidos.
Semelhante conduta pode ser observada nos tribunais de
justiça assembleias da atualidade, embora seja um tipo de comportamento próprio
dos homens de todos os tempos, fazendo parte dos jogos do poder, inclusive no
âmbito das instituições religiosas. Quando a fé era imposta às consciências, alguns
religiosos, em nome do interesse de grupos, promoveram a deturpação da doutrina
original do Cristo, corrompendo a pureza dos ensinamentos cuja principal
característica era sua simplicidade, alcançando facilmente o coração dos fiéis.
Desde então, para justificar os incompreensíveis critérios adotados do ponto de
vista teológico, muitos se deram o trabalho de fazer verdadeiros malabarismos
linguísticos, de ordem meramente intelectual, enquanto outros, para não sofrer
represálias, aceitavam esse estado de coisas, calando-se.
Como a grande maioria dos fiéis não tinha acesso ao conhecimento
– e falamos de um período conturbado da História, como foi a Idade Média –, só
lhes restava acatar as decisões impostas, colocando-se ao lado dos poderes
eclesiásticos. Toda rebeldia, toda confrontação eram terrivelmente punidas até
mesmo com a morte nas fogueiras da Inquisição, sob as mais diversas acusações,
só escapando quem se “arrependesse”, reconsiderando sua posição, como se deu,
por exemplo com o sábio Galileu Galilei, cujos escritos contrariavam as teses
da Igreja. Giordano Bruno, contudo, não teve a mesma “sorte” e terminou seus
dias queimado em Veneza. Em razão disso, compreendemos muito bem por que Jesus
tivesse dado graças a Deus por ter ocultado aos “sábios e prudentes” as coisas
celestiais, revelando-as, porém, aos “simples e pequeninos” (Mateus 11:25).
Notas
(*) Tribunal dos antigos judeus, em Jerusalém, composto de
sacerdotes, anciãos e escribas, o qual julgava os assuntos criminais e
administrativos. O mesmo que Sinedrim ou Sanhedrim.
(**) Ver Lucas 22:66-71.
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