"O amor é líquido. Ele se conforma com as formas
possíveis. Às vezes tem a forma plena de um mar aberto. Às vezes cabe num guardanapo
de lanchonete ou num vidrinho de perfume. Às vezes se presentifica somente nas
ideias. Mas o amor é. Mesmo quando ele não pode ser, ele acaba sendo.
Diz Paulo, no livro que não finda, que o amor é paciente.
Sim, o amor não tem pressa, ele pode esperar milênios, milênios no ar. Quem se
afoba somos nós, súditos desobedientes que não compreendemos o seu tempo. Por
causa disso, quase sempre estragamos tudo. O amor verde, antes do seu tempo, é
duro. Não se conhece a textura na mordida da boca. Por vezes é amargo, mas não
de si, mas amargo da língua aftosa e herpética de querências fora de tempo. Não
dá para apressar o rio do amor: ele corre sozinho. Aprender a esperar o tempo
do amor é um segredo para poucos felizardos. Uma pérola repousa por anos na ostra.
Se o amor é paciente e devemos nos espelhar nisso, onde
guardar o amor que não pode ser? Depende da história. Uns guardam num fundo de
armário. Outros, na posta-restante dos Correios, que andam ariscos demais, a
propósito. Para quem não sabe o que é posta-restante: a gente pode pôr uma
indicação no subscrito de uma carta quando quer significar que ela deve
permanecer na repartição dos Correios até que seja reclamada pelo destinatário.
A posta-restante é o lugar onde ficam tais cartas, as que restam. Assim, um
amor sempre tem um remetente. Às vezes o destinatário não reclama o amor. Às
vezes sequer sabe sobre ele. Porque não pode. Ou não quer. Para dar um F5 no
texto, podemos dizer que hoje se guarda em e-mails nas caixas de rascunhos, em
SMS no draft, em tweets soltos na timeline, em cutucões reticentes no Facebook,
em posts a postos para serem publicados, só esperando a coragem. Essas são
versões modernas e descafeinadas do amor. Todos lugares mais modernos de se
guardar um amor quando seu tempo não chegou ainda. Ou quando não pode chegar.
Mas se o amor não chegar, ele se perde? Não, o amor não se
perde. Esse é o segredo. O amor não tem dono. É um grande erro pensar-se dono
do amor. Quando não se acha aqui, o amor migra para acolá. Se não pode
acontecer do jeito pretendido neste tempo e espaço, o amor corre, evapora,
condensa e chove em outro lugar, para outras gentes, em outra geografia, em
outras épocas.
Num futuro, como diz a música, escafandristas – só o Chico
Buarque para colocar com pertinência escafandristas numa música – recolherão e
arqueologistas consultarão os vestígios digitais e analógicos do amor não
vivido. Os sábios de então procurarão, ávidos, a Pedra Rosetta, o granito negro
que lhes permitirá ver o tamanho do amor que não se plenificou. Ficou na
história universal dos amores não vividos, como aquele de Verona. Como o amor
não se perde, mas se transmuta, se metamorfoseia e migra, enquanto tentam os arqueólogos
decifrar de onde veio, futuros amantes estarão usufruindo com delírio desse
amor diferido, de feridos, sem saber que ele é herança de uma impossibilidade
passada.
Nada de tristeza. Pode-se sempre usar o amor viajante,
deixado pelos amores proibidos do século XVI. Se não cairmos na falácia de que
tem de ser um amor específico, podemos entender que podemos ser os futuros
amantes de um passado no nosso presente. Não se afobe, não. Amores serão sempre
amáveis. Nada é pra já."
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