Mary Poppins era um agênere?

Francisco Muniz (*)





Os agêneres constituem, de acordo com a definição de Allan Kardec (1) em O Livro dos Médiuns (FEB), “uma variedade de aparição tangível, através da qual os espíritos se revestem momentaneamente com a forma de uma pessoa viva, a ponto de fazerem completa ilusão”, ao se manifestarem no plano físico. São, portanto, do ponto de vista meramente físico, seres não gerados tal como concebemos essa geração. Essa descrição cabe direitinho no perfil de Mary Poppins, a personagem criada pela escritora e atriz australiana P. L. (Pamela Lyndon) Travers (1899-1966) e levada ao cinema pelos estúdios de Walt Disney (2), assim alcançando a popularidade.
O que nos faz pensar que se trata de um agênere são as circunstâncias, as consequências e o modo como Mary Poppins surge na vida de uma família inglesa – em história ambientada na primeira metade do século XX –, por causa do desejo de duas crianças. Nesse conto, muito bem tramado por alguém que certamente não era espírita mas conhecia a teoria espiritualista, vemos vários temas da alçada da Doutrina dos Espíritos, como a assistência espiritual, a mediunidade de efeitos físicos, o papel do anjo da guarda, o combate ao materialismo pela prática da caridade e, claro, a condição dos espíritos agêneres. Estas reflexões, portanto, se prendem ao fato de pensarmos que, neste mundo, quase nada tem a ver com o Espiritismo, mas o Espiritismo tem a ver com quase tudo.
Em nossa análise, convém primeiramente documentar, o quanto possível, a possibilidade da existência de agêneres, isto é, de sua presença entre nós, os pretensos vivos, posto serem eles originários do “outro mundo”, eufemismo para designar o plano espiritual. Desse modo, tentemos responder a algumas questões pertinentes. A primeira é esta: é possível aos Espíritos se manifestarem junto a nós, na dimensão da realidade material, ou eles só interagem conosco indiretamente, resguardando-se na invisibilidade?
A resposta é sim, conforme ensina-nos Allan Kardec em O Livro dos Espíritos (FEB), obra inaugural da Revelação Espírita (3), e também no supracitado O Livro dos Médiuns, o tratado científico em torno do intercâmbio com o mundo espiritual. Nessas duas obras, somos informados de que essa interação só se torna possível graças à presença de um sentido especial nos homens, a mediunidade, da qual os Espíritos se servem para exercer sua ação na matéria. Assim, todos – a Humanidade inteira – somos médiuns, mais ou menos capazes de facilitar o contato com os seres do “outro mundo”, que não tem, é bom frisar, nada de sobrenatural, sendo apenas uma dimensão paralela à nossa, regida por leis próprias, tão naturais quanto aquele e o nosso mundo, tanto que se interpenetram.

Fatos bíblicos e ciência espírita

Uma vez esclarecidos, entendemos que os Espíritos podem se manifestar através da simples aparição, sendo observados pela dupla vista do médium – exemplo disso é a aparição do arcanjo Gabriel àquela Maria que seria a mãe de Jesus, no episódio da Anunciação; ou através da materialização, apresentando os efeitos ponderáveis da materialidade, graças ao caráter maleável, ou plástico, do corpo perispiritual (4), o envoltório semimaterial do Espírito e deste inseparável. Essa modalidade de ação sobre a matéria não é gratuita, prendendo-se a tarefas específicas que o Espírito tenha a desempenhar na Terra momentaneamente.
Observamos a teoria e agora vamos aos fatos que, se não comprobatórios, ao menos oferecem elementos nesse sentido. Perguntemos, pois: há relatos ou registros sobre a presença de agêneres na Terra, em algum momento? A Bíblia, no Velho Testamento, conta que antes da destruição da cidade de Sodoma, afundada em práticas nefandas, Deus (Javé) enviara dois de seus anjos para de lá retirarem a família de Lot, as únicas pessoas que se mantinham agradáveis a Javé. Eram dois mancebos em tudo semelhantes aos seres humanos, tanto que os pervertidos habitantes da cidade, ao vê-los, quiseram arrebatá-los para suas ações ignominiosas, conforme a descrição do capítulo 19 do livro da Gênese, o primeiro do Pentateuco mosaico (5).
Há quem tome as narrativas bíblicas como verdades relativas à história de um povo, de modo que seriam literatura confiável. Também as informações concernentes às revelações espíritas, transformadas, muitas delas, em obras literárias, podem trazer indícios da verdade que procuramos. Assim é que no livro Bairro dos Estranhos (IDE, 2003) seu autor, Wilson Frungilo Jr., brasileiro, refere a participação de um agênere, um espírito que se materializa na rua de uma grande cidade para ajudar concretamente a alguém necessitado, atestando a possibilidade do fato.

Em cena, Mary Poppins

Passemos, agora, a considerar essa peculiaridade da obra de P. L. Travers, que até hoje encanta jovens e adultos e permite fazer ilações a partir da fenomenologia espírita, conforme a documentação deixada por autores como William Crookes (Londres, 1832-1919), cientista inglês que pesquisou a materialização do Espírito Katie King, e Charles Richet (Paris, 1850-1935), fisiologista francês ganhador de um Prêmio Nobel, que seguiram a trilha aberta por Allan Kardec, embora jamais se rendessem à Doutrina Espírita em suas propostas de cunho eminentemente científico e de consequências moralizantes. E lições de moralidade não faltam em Mary Poppins, paralelamente às questões científicas e extrafísicas, iluminadas pelo Espiritismo.
Desde já, deixemos claro que a finalidade do aparecimento do agênere Mary Poppins na casa do banqueiro George Banks, pelo que compreendemos, era exatamente despertar, principalmente no pai das crianças Jane e Michael, a noção de amorosa responsabilidade na criação de ambas. Materialista, Banks (o nome, significando “bancos”, diz muito sobre essa condição) só se interessava pelo trabalho e deixava a incumbência educativa dos filhos a cargo das babás, porquanto até mesmo a mãe deles dedicava-se a atividades fora do lar, como a campanha sufragista feminina, da qual era ela militante.
Com sua educação negligenciada pelos pais, restava às crianças demonstrar sua insatisfação “perturbando” as babás e é assim, quando a última delas, não suportando mais as muito compreensíveis peraltices infantis, demite-se, que entra em cena Mary Poppins. Tencionando ajudar o pai na tarefa de encontrar uma auxiliar substituta, mas à altura de suas pretensões, Jane e Michael escrevem um anúncio para ser publicado no jornal. Fazem então uma redação toda peculiar na qual destacam as qualidades que toda criança esperaria de uma babá, especialmente o gosto por brincadeiras. George Banks, contudo, acha tudo aquilo uma grande bobagem e rasga o papel, jogando os pedacinhos na lareira apagada.
“O espírito sopra onde quer; ouvis sua voz, mas não sabeis de onde vem nem para onde vai”, comentou o Mestre Jesus há mais de dois mil anos (6). Então, como que por mágica – ressaltemos que a história criada por P. L. Travers é do estilo literatura fantástica –, os pedacinhos da redação dos meninos Banks sobem pela chaminé, enquanto o pai cuida de telefonar para o jornal a fim de mandar publicar um anúncio como lhe convém. No dia seguinte, as crianças vão à janela e veem uma fila de desagradáveis pretendentes ao cargo: são mulheres carrancudas, vestidas austeramente. Essa fila é logo dissolvida por um vendaval e, espantados, Jane e Michael observam Mary Poppins descer do céu segurando uma estranha sombrinha e uma grande sacola de pano.

Estranhas tarefas a cumprir

Ao abrir a porta para atender às candidatas a babá, Banks não compreende por que apenas uma se apresentara, e menos ainda quando Mary Poppins apresenta-lhe o anúncio escrito por seus filhos, estranhamente reconstituído. Mas, encantadas, as crianças o fazem aceitar a nova babá e Mary logo trata de adaptá-las ao seu estilo todo próprio de gerir situações. Como tem sabedoria e disposição para agir organizadamente, seus atos, aos olhos infantis, parecem truques de mágica – de dentro da grande bolsa de pano ela retira, por exemplo, um enorme cabide; o cabo de sua sombrinha é a cabeça de um pássaro falante – e com isso os infantes só podem ficar cada vez mais embevecidos.
E então se percebe, uma vez que se tem olhos de ver além das aparências, que a nova babá instrui os dois meninos sobre a realidade espiritual, que a princípio parece uma fantasia: pinturas que saltam da calçada, ganhando vida, mergulho em outras dimensões, mais coloridas e vivas que a realidade objetiva, etc. Também são apresentados os efeitos das várias faculdades anímicas e mediúnicas em processo nos seres humanos detentores dessas possibilidades, como a levitação, talvez recordando o quanto a Europa e a América do Norte observaram no campo da chamada paranormalidade, especialmente com o médium escocês Daniel Dunglas Home (7). 
Dessa maneira, Mary Poppins se revela aos aprendizes da Verdade um precioso e insuspeitado repositório de informações transcendentais, ao abordar aspectos da existência e da ação dos Espíritos, em constante processo de intercâmbio com os homens, para que estes, estimulados pelo conhecimento do que verdadeiramente são, possam desenvolver, com o auxílio da mediunidade ou da simples intuição, as tarefas que os aperfeiçoarão aos olhos de Deus.

Questão de linguagem

O filme Mary Poppins é um musical, gênero do agrado de Walt Disney, que nessa produção se esmerou em apresentar praticamente todas as artes clássicas: além da música, vemos aí a pintura – Bert é um artista cujos desenhos ganham vida literalmente, de tão perfeitos –, a arquitetura, ainda guardando traços da era vitoriana, e o próprio cinema, considerado a sétima arte e o supra sumo da fotografia. São linguagens que comunicam intenções e ideias e, a respeito disso, o filósofo brasileiro Huberto Rohden (8) é de opinião que Deus se comunica conosco através de três linguagens distintas: a música, a mística e a matemática.
Na história, Mary Poppins deixa sempre claras suas intenções e pretensões, tanto para as crianças como para os adultos da casa, de modo que sua comunicação não sofre qualquer ruído, como se enfatizasse a recomendação do Cristo: “Seja, porém, o vosso falar: sim, sim; não, não” (9). Ou seja, disciplina no falar, consequente da disciplina no pensar e no sentir. Sabemos, como diz a sabedoria popular, que “a palavra é de prata e o silêncio é de ouro”, de modo ser imperioso ponderar sempre o que se pretende dizer, a fim de não produzirmos impressões perturbadoras e de difícil conserto. Assim, Mary ensina às crianças a “palavra mágica” supercalifragilistiexpialidoce, que deve ser dita quando se quer falar mas não se tem nada a dizer.
E, claro, ela dá o ensinamento cantando, mostrando que esse comportamento é mesmo uma arte. Mas a verdadeira arte que Mary Poppins nos apresenta é a da formação de caracteres conhecida por educação, aplicada pedagogicamente às crianças, cuja mentalidade é mais propensa à assimilação de valores nobilitantes que as farão, no futuro, experimentar relacionamentos saudáveis e harmoniosos. Tais valores se resumem na prática do bem, ou seja, em tratar bem aos outros sem descuidar de si mesmo, manifestando caridade e humildade, como ensinou o Cristo, e nesse ponto Mary instrui as crianças a olhar para os necessitados, a exemplo da “mulher dos pombos”, embora isso perturbe os adultos acostumados apenas com a aparência das coisas e marcados portanto pelo materialismo.
   
Fenômeno de materialização?

Já vimos lá em cima que os Espíritos podem se manifestar entre nós inclusive através da materialização completa e este fato foi constatado cientificamente no século XIX, graças às experimentações feitas pelo sábio inglês William Crookes, membro da Sociedade Real (Academia de Ciências de Londres). Provavelmente, P. L. Travers teve conhecimento dessas experiências, assim como muito possivelmente tenha lido o tratado A História do Espiritualismo (publicado em 1926), de Sir Arthur Conan Doyle (10), para compor seu romance. Com efeito, em Mary Poppins a autora parece recordar-nos a ação corajosa e pioneira de Crookes ao investigar minuciosamente a materialização do Espírito Katie King, tornada factível graças à médium também inglesa Florence Cook (11).
Nessas ocasiões, segundo Crookes relatou em seu livro Fatos Espíritas (FEB, 1971), a médium se mantinha reservada num aposento enquanto Katie King se materializava na sala, à vista de testemunhas. Hoje, com os estudos avançados acerca da fenomenologia mediúnica, sabemos que isso se dá pela combinação dos fluidos do médium e do Espírito e assim entendemos por que, na história criada pela autora australiana, Mary Poppins nunca aparece junto à mãe das crianças, e vice-versa, como se esta fosse o instrumento de que Mary se valesse para sua manifestação.
Por fim, Mary Poppins cumpre sua missão na residência dos Banks, sendo bem-sucedida em incutir noções de disciplina e organização na mentalidade das crianças e, principalmente, aproximá-las dos pais, especialmente da figura paterna. A despedida se dá quando Jane e Michael, aparentemente esquecidos da querida e surpreendente babá, saem com a família para um passeio no parque, onde iriam empinar pipas. Pela janela do quarto, Mary observa a cena, põe seu chapéu, acomoda sus coisas na grande sacola de pano e, sem dar trela às observações da cabeça de passado falante do cabo de seu guarda-chuva, aproveita a mudança do vento e voa de volta para o lugar de onde veio.
No fechamento deste trabalho, contudo, apraz-nos transcrever aqui as palavras judiciosas do Espírito São Luiz (12), cuja mensagem, aproveitada por Allan Kardec em O Livro dos Médiuns (13), corresponde ao teor de nosso despretensioso ensaio: “Meus amigos, deixai-me dar-vos um conselho, porque caminhais sobre um terreno novo, e se seguirdes a rota que vos indicamos, não vos desviareis. Disseram-vos uma coisa bem verdadeira que queremos vos lembrar, e é que o Espiritismo não é senão uma moral, e que não deve sair dos limites da filosofia, nada ou pouco, se não quiser cair no domínio da curiosidade. Deixai de lado as questões de ciência: a missão dos Espíritos não é a de resolvê-las, poupando-vos ao trabalho de pesquisa (grifo do original), mas a de procurar tornar-vos melhores, porque será assim que avançareis realmente.”

Salvador, setembro de 2018.



Notas:
(*) Escritor espírita baiano, autor dos livros Lições do Evangelho para a Vida Prática (2013), O Chamado (2014), Casas do Evangelho (2017) e Por Causa Dele – pequenas histórias com Jesus (no prelo).
1 – Pseudônimo do pedagogo francês Hippolyte Léon Denizard Rivail, que identificou nas manifestações dos Espíritos toda uma ciência cujos postulados e leis ele codificou na Doutrina Espírita.
2 – Walter Elias Disney foi o criador dos personagens infantis Mickey e Pato Donald, de cujo sucesso erigiu um império do setor de lazer e diversões. Nasceu em 1901 e faleceu em 1966, nos Estados Unidos.
3 – O Espiritismo é considerado a Terceira Revelação de Deus aos homens, no panorama religioso da Terra, pela constatação de que Moisés foi o primeiro revelador, trazendo o conhecimento das leis divinas, enquanto coube a Jesus representar a segunda revelação, explicando em que consistem as leis de Deus. A revelação espírita, contudo, não está centrada num homem só, mas no conjunto dos Espíritos que Deus encarregou de transmitir o conhecimento das leis que regem as relações entre o mundo dos “vivos” e o dos Espíritos, sob a égide do Espírito de Verdade.
4 – De acordo com as análises de Allan Kardec, a partir das informações dos Espíritos, há nos homens um elemento fluído que permite a ligação entre o espírito, ou alma, e o corpo físico; a esse liame o Codificador chamou períspirito, que é verdadeiramente o molde semimaterial do corpo de carne e guarda toda a memória do espírito, sendo detentor de inúmeras propriedades, uma das quais a de propiciar a manifestação espiritual no plano físico.
5 – Pentateuco é o conjunto de cinco livros e, no caso da Bíblia, corresponde aos primeiros relatos dessa obra, atribuídos a Moisés: Gênese, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio.
6 – Evangelho de João, capítulo 3, versículo 8.
7 – D. D. Home alvoroçou os teatros de Londres e Paris com suas apresentações de levitação, saindo e entrando por janelas, afirmando ser auxiliado pelos Espíritos. O autor baiano Adilton Pugliese escreveu uma interessante biografia desse médium.
8 – Filósofo espiritualista brasileiro, criador da Filosofia Univérsica e autor de diversas obras nas quais expõe seu pensamento, baseado numa interpretação mística do Evangelho. Lecionou na Universidade de Princeton, nos Estados Unidos, onde conheceu o físico Albert Einstein. Morreu em 1981, aos 87 anos de idade.
9 – Evangelho de Mateus, cap. 5, versículo 37.
10 – Renomado escritor escocês, autor das famosas aventuras do detetive Sherlock Holmes. Viveu entre 1859 e 1930.
11 – Médium inglesa que serviu às experiências do sábio William Crookes, que pesquisou a materialização do Espírito Katie King no ano de 1874, de acordo com os métodos científicos da época.
12 – São Luiz é um dos Espíritos autores da Revelação Espírita e assim integrante da numerosa equipe do Espírito de Verdade, além de ser o Guia Protetor da França.
13 – Segunda parte, cap. XXXI, Dissertações Espíritas, item XXI.





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