Sobre o livro "Muita luz", de Berthe Fropo

Ery Lopes e Rogério Miguez
(Tradutores)

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Para se compreender bem uma doutrina, além de se estudar a sua essência teórica e seus postulados, é imperativo conhecer a sua historiografia, contextualizando as atividades práticas de seu entorno, ou seja, os acontecimentos históricos que lhe dizem respeito; é preciso conhecer as causas, os propósitos e a efetivação do seu lançamento, bem como o seu desenvolvimento, os desdobramentos, as consequências no seu próprio meio, entre os seus correligionários, e no ambiente externo com o qual tem contato, inclusive as reações adversas a essa doutrina.

Acreditamos que a historiografia espírita é bem pouco considerada, até mesmo, de forma geral, pelos próprios espíritas. Fala-se quase nada sobre este tema, sabe-se muito pouco sobre este assunto. Até mesmo a respeito de Allan Kardec, o codificador do Espiritismo, o desconhecimento é comum, tendo em vista que muitas informações clássicas sobre sua biografia estão sendo reformuladas a partir de novas fontes históricas recém-descobertas.

Em suma, tudo isso vem a corroborar com o velho chavão: o Espiritismo é bem pouco compreendido.

Beaucoup de Lumière vem, então, contribuir para que nos voltemos às origens históricas da nossa querida Doutrina Espírita, a partir de informações que foram ignoradas pelo tempo em que essa obra permanecera no anonimato. E a sua motivação, quer dizer, o que fez com que sua autora empreendesse tal publicação, foi mais do que justa: foi emergencialmente necessária. O Espiritismo, que sempre sofreu com ataques externos, então periclitava por ação direta de agentes internos.

Todas as suas bases doutrinárias estavam sendo sabotadas por dentro; o fundamento da racionalidade, de que tanto Kardec fazia questão de enfatizar, estava sendo corrompido pelo misticismo e religiosismos, levando os espíritas ao ridículo. Era mister um apelo, tal qual propõe a obra de Fropo.

Os poucos trabalhos que se ocupam com a historiografia espírita geralmente têm colocado a figura de Pierre-Gaëtan Leymarie como um legítimo continuador da obra de Kardec e, por conseguinte, um grande trabalhador da causa espírita. Pois, com efeito, esta consideração, em face das novas informações, precisa ser repensada. Leymarie — conforme demonstra Madame Berthe Fropo — foi, ao contrário, um prestador de grande desserviço ao Espiritismo, para não dizermos diretamente um grande traidor. Os fatos apontam realmente que ele desvirtuou a Doutrina dos Espíritos, rebaixando-a ao nível das seitas religiosistas mais vulgares e ao rol das pseudociências exotéricas e místicas, inspiradas no que o orientalismo tem de mais banal. À frente da redação da Revista Espírita, Leymarie fez do mais influente jornal espírita do mundo um catálogo das mais esdrúxulas práticas, tal a de venda de bolas de cristal e cartas de leitura da sorte. Em meio a uma miscelânea de crenças, confundiu as ideias kardecistas com a pretensa "revelação da revelação" de Jean-Baptiste Roustaing e com a obscura doutrina teosófica originária da enigmática Helena Blavatsky, então atada às megalomanias do "soi-disant" americano coronel Olcott.

Não é nossa intenção difamar deliberadamente a figura de Leymarie, mas, como recurso e consequência do curso historiográfico, responsabilizá-lo pelo que adveio com a Doutrina Espírita, que ele tinha por missão — e até por ofício profissional, já que era pago para tal — defender e propagar respeitando sua essência doutrinária. O fato é que Leymarie e seus afiliados esfacelaram o movimento espírita francês e mudaram o rumo da Terceira Revelação. Bem poderia ser que o movimento espírita francês não fosse sobreviver por muito tempo às demais — e não poucas — frentes de ataque, advindas impiedosamente de todos os lados. Contudo, nenhum golpe parece ter tido maior impacto e contribuição para a derrocada do movimento espírita na França e demais países da Europa do que este desferido pelos que seriam as sentinelas da doutrina consoladora.

O reconhecimento desses desvios doutrinários de Leymarie, longe de objetivar degradar sua imagem, ajuda-nos hoje a termos consciência da falibilidade dos homens, mesmo dos melhores intencionados, especialmente porque, como é sabido, os grandes encargos estão passiveis de grande provações, dentre as quais a de assédio de Espíritos obsessores — ao que não seria prudente a nenhum de nós se considerar imune. Caiu um Leymarie onde qualquer outro poderia cair. E aos falidos, nada menos que nosso mais sincero sentimento de caridade, na firme esperança de que este nosso irmão, de consciência refeita, oferte-se ao Espírito Verdade para uma nova e reparadora jornada terrena, pela qual venha desfraldar a bandeira espírita e contribuir para o projeto evolutivo da humanidade.

A queda de Leymarie ajuda-nos a sermos mais racionais com relação aos dirigentes, médiuns e ativistas espíritas — dentre os quais os supostos guias espirituais; ajuda-nos a repensar o movimento espírita atual, pondo-o em comparação com os verdadeiros ideais da Codificação Espírita, os propósitos e metas estabelecidas pela espiritualidade para fazer avançar a humanidade. Esse comparativo, a partir de sua nascente até as gerações subsequentes, é uma das razões pelas quais tanto defendemos a necessidade de se valorizar a historiografia, para que possamos compreender o cenário atual e projetarmos o porvir, requalificando nossas ações atuais a partir dos erros do passado.

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Você lê o livro na íntegra aqui.

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