“Eu quero!”

Francisco Muniz


“Quantos vivem na terra que algum dia, em trevas, maldirão haverem visto a luz! Ah, bem felizes sim, esses que, na expiação, foram privados da vista.”
(Vianney, cura d’Ars, ESE, cap. VIII, item 20)

Naqueles tempos, Jerusalém e a Palestina inteira, por assim dizer, regurgitavam de seres enfermos a aguardarem pacientemente o lenitivo que só o tempo lhes traria, mercê da divina Providência, uma vez que os homens versados na prática médica de então ainda não conseguiam atender a contento às especificidades de cada mazela, tornando impossível a cura de leprosos, aleijados, cegos, como os coxos e estropiados de toda sorte.
E todos lamentavam o sofrimento atroz de que se viam presas, especialmente os que padeciam da lepra, porquanto obrigados a viver longe das comunidades urbanas e de seus entes amados, para não contaminá-los com a doença que os execrava aos olhos alheios.
Dentre esses enfermos do corpo, um havia que parecia não reclamar como os demais. Ao contrário, ele se apresentava resignado e era visto muitas vezes em silêncio, a cismar possivelmente sobre as circunstâncias da vida naquelas paragens e naqueles dias difíceis para a alma humana. Era o cego Simeão.
Cego de nascença, Simeão acostumara-se a viver no escuro, mas sentia, no fundo de seu ser, que essa não era sua condição própria, pois algo no íntimo lhe dizia que ele poderia ver a luz do sol e, como tantos de seus concidadãos, alegrar-se enxergando a paisagem, as cores, a face e o riso das pessoas. Simeão sonhava com esse dia e sentia que ele não estava distante, uma vez que essa ideia lhe vibrava estranhamente no peito. E Simeão se entregava a suas meditações...
Um dia vieram lhe dizer que um novo profeta realizava curas em nome de Deus, fazendo aleijados andarem, leprosos se limparem e cegos enxergarem. Cegos enxergarem? Simeão ficou curioso: quem seria esse profeta, por onde andava , haveria a possibilidade de um encontro com ele? O coração de Simeão encheu-se de felizes expectativas. Desse informante, soube também que o profeta, a quem chamavam de Jesus, ao passo que Ele próprio se identificava como “o Filho do Homem”, numa referência simbólica ao poder supremo de Deus, costumava visitar as aldeias da Palestina falando num certo Reino dos Céus, convidando os homens a construí-lo no próprio coração, embora se demorasse mais em Jerusalém e nas cercanias do mar da Galileia, de onde provinha, tendo crescido em Nazaré.
Se era assim, haveria oportunidade de estar com esse Jesus sem precisar deslocar-se para muito longe, pensou Simeão, passando a prestar mais atenção nos acontecimentos ao seu redor, a fim de estar presente à ocasião em que sua aldeia também merecesse a providencial visita do Filho de Deus.
Não demorou muito para Simeão ouvir rumores sobre a aproximação de um ruidoso grupo de homens e mulheres e animou-se a comparecer à recepção deles na entrada da aldeia. Pediu ajuda a Zacarias, o vizinho que o havia informado quanto aos prodígios operados por Jesus, e assim ambos se juntaram à turba que aguardava a chegada do Nazareno e seus seguidores.
– Onde está ele, Zacarias, onde está esse Jesus que minh’alma aguarda desde sempre? – a voz de Simeão estava estranhamente embargada e Zacarias assustou-se:
– Ali! – disse ele apontando, esquecido de que Simeão não podia ver o que ele pretendia mostrar, mas o cego, por alguma razão, percebia a direção da voz de seu amigo e caminhou para lá. Era como se estivesse sendo atraído, mas ele não se importava por não poder resistir, porque simplesmente não o queria. Algo em seu íntimo lhe dizia para seguir em frente, que aquele era seu grande momento.
Ao chegar diante do Senhor – Simeão o sentia –, ele parou e passou a escutar. O vozerio era intenso, todos queriam algo daquele homem especial: doentes pediam-lhe um lenitivo, viúvas solicitavam consolo, pais desesperados clamavam pelos filhos escravizados ou mortos pelos romanos invasores, famintos imploravam por pão. Eram tantas as aflições que Simeão comoveu-se: poderia o Profeta resolver todos aqueles problemas, mesmo sendo ele o Filho de Deus? E envergonhou-se de sua motivação egoística. Ia retroceder, mas sentiu a vigorosa energia da mão pousada sobre seu ombro e ouviu a voz carregada de suave autoridade:
– E tu, meu amigo, que desejas de mim?
As palavras de Jesus trouxeram Simeão à realidade e ele recordou por que estava ali, mas foi ainda tomado pela compaixão que ele dirigiu-se ao Cristo:
– Senhor, não tenho o direito de pedir-Te coisa alguma, pois sinto em minha alma que vieste por outro motivo que não satisfazer as vontades de meus irmãos presos ainda a questões tão mesquinhas. Mas, se quiseres, poderás curar-me e tomar-me a teu serviço, uma vez que sinto e ouço em minha mente um chamado para algo maior que minhas meditações.  E alguma coisa me diz, Senhor, que és Tu a razão desse chamamento. Assim, se queres...
– Eu o quero, Simeão. Fica curado e segue-me, pois o Reino dos Céus é para os que recebem aqueles que meu Pai enviou e se dispõem a modificar a própria vida em função das necessidades do próximo, conquistando as alegrias celestiais. Recupera tua visão para demonstrares assim as verdades de que sou portador em nome dAquele que é todo amor, todo justiça e todo misericórdia. Abre teus olhos para a luz e mostra a teus irmãos de caminhada a trilha que conduz à Vida, para que os homens cedo despertem da cegueira em que se encontram e se libertem das cadeias da ignorância.
Simeão abriu os olhos, com efeito, e eles estavam marejados. Através das lágrimas abundantes ele via como se jamais houvesse sido privado da visão. Ele via a face serena do Cristo, as pessoas em volta implorando assistência do Senhor, e O reconhecia como aquele ser querido que o confortava em seus sonhos; via a paisagem árida de sua aldeia banhada pela luz solar; via suas mãos e seus pés e a crueza das roupas surradas que vestia. E via mais, muito mais do que seus olhos podiam mostrar: via em tudo a grandeza de Deus convidando os homens à comunhão com aquele Pai referido por Jesus, embora seus irmãos ainda não compreendessem...
Naquele momento, Simeão abraçava o compromisso com a Verdade, sendo dali por diante um sincero discípulo do Cristo.



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