Por causa Dele - Pequenas histórias do tempo de Jesus


Francisco Muniz 



1 – O vinho bom

“Meus amigos, agradecei a Deus o haver permitido que pudésseis gozar a luz do Espiritismo. Não é que somente os que a possuem hajam de ser salvos; é que, ajudando-vos a compreender os ensinos do Cristo, ela vos faz melhores cristãos. Esforçai-vos, pois, para que os vossos irmãos, observando-vos, sejam induzidos a reconhecer que verdadeiro espírita e verdadeiro cristão são uma só e a mesma coisa, dado que todos quantos praticam a caridade são discípulos de Jesus, sem embargo da seita a que pertençam.
(Paulo, o apóstolo, ESE, cap. XV, item 10)

Convém que primeiro eu me apresente, antes de contar minha história. Eu sou Joaquim, filho de Zacarias e moro em Caná da Galileia desde que nasci. Fui um dos garçons que serviram na festa das bodas de Samuel e Ruth, durante a qual deu-se o prodígio que nos espantou a todos. Ainda hoje não entendo o que aconteceu. Bastou a mãe daquele homem dizer-nos que fizéssemos como ele ordenasse e a festa, que praticamente havia acabado, junto com o vinho, tomou outra dimensão, recomeçando com inusitado encanto, porquanto os convidados exultaram ao experimentar o vinho novo que saía das ânforas onde antes havia apenas água. A mesma água com que aquele Jesus mandou-nos encher as talhas.
Como Ele fez aquilo? Como a água se transformou em vinho? E por que jamais se provou vinho igual? – sim, pergunto isso porque também eu bebi um pouco desse vinho e afirmo que nenhum dos que provei após aquela festa apresentou qualidade ao menos parecida. Era um vinho tão bom que por mais que o bebêssemos não nos embriagávamos! Fiquei intrigado e resolvi seguir aquele homem, para de alguma forma compreender sua magia, pois só pode ter sido mágica aquela façanha. Quem era aquele homem, aquele Jesus capaz de realizar o que somente nosso pai Moisés fez, para libertar nossos antepassados da escravidão no Egito? Resolvi que eu iria descobrir. E é aqui que começa minha história, a história de um seguidor desconfiado que depois...
Bem, eu O segui, como disse, depois de me despedir de meus pais e meus irmãos, levando apenas alguns poucos suprimentos. Quando Ele e seu pequeno grupo deixaram Caná, vi que sua mãe os acompanhava e deduzi que fossem seus familiares. Concluí que estivessem voltando à não muito distante Nazaré e isto me contentou, pois não teria de andar em demasia. Mantive-me a certa distância deles, mas observei que em determinado momento um rapazinho ao lado de Jesus virou-se e apontou para mim, certamente denunciando-me. No entanto, nada aconteceu, ninguém se importou com o fato de que eu estivesse caminhando atrás deles e durante todo o trajeto até Nazaré nenhum outro olhar se virou em minha direção.
Já na pequena cidade, mantive-me nas proximidades da casa onde se refugiaram e não precisei esperar muito até que Jesus saiu, dirigindo-se à Sinagoga, levando com Ele um grupo bem menor. Postei-me à porta e o vi dirigir-se ao púlpito para ler nas Escrituras os vaticínios do Profeta Isaías sobre a vinda do tão aguardado Messias, que viria libertar Israel do domínio dos conquistadores estrangeiros e dar ao nosso povo a condução do mundo, pois sabíamos ser, desde muito tempo, os escolhidos por Deus para disseminar Seu santo nome pelas eras a fora, como Ele dissera ao nosso Pai Abraão. Então Jesus leu a profecia e fechou o Livro, dizendo com toda naturalidade que naquele dia se cumpriam aquelas palavras.
Como?
Sim, do mesmo modo que eu não entendi, os homens ali presentes, os próprios concidadãos de Jesus ficaram perplexos e começaram a discutir uns com os outros até que por fim se indispuseram com o filho daquela gentil Maria, porque não aceitaram o que ouviram de seus lábios. Falavam alto, gesticulavam, com raiva e violência, apontando para aquele homem corajoso que se manteve calmo e com toda a tranquilidade do mundo passou em meio à turba exaltada, deixando a Sinagoga com seu pequeno séquito e tomando o rumo da saída de Nazaré, recebendo os impropérios e mesmo algumas pedras que atiraram contra Ele. Quando o furor se dissipou, corri para alcançar Jesus e seus seguidores, encontrando-os não muito distantes. Na verdade, andavam tão devagar que era como se me esperassem chegar.
Ele me dirigiu a palavra:
– Demoraste, Joaquim. Se queres, de fato, aprender de mim, que sou manso e humilde de coração, convém te aproximes mais um pouco. Vem conosco, para que teus olhos vejam a Verdade do Reino dos Céus e tua boca a pronuncie no momento certo.
Juntei-me, assombrado, ao grupo dos discípulos e pude assim observar o que Jesus, autonomeando-se o Filho do Homem, realizava em nome de Deus, o Deus de Isaac e Jacó que agora Ele chamava de Pai, propositalmente ignorando que para nós, desde Moisés, esse Deus era o Senhor cruel e vingativo que nos impelia ao extermínio dos inimigos de nossa raça e certamente nos faria expulsar os romanos invasores que nos escravizavam em nossas próprias terras. No entanto, Jesus pregava, em nome desse Deus-Pai, o perdão aos inimigos, que devíamos ter para com eles amor e misericórdia... e eu ainda não entendia.
Eu estava com eles no dia em que Jesus, rodeado por uma grande multidão, após ter-lhes falado palavras belíssimas do alto de um monte durante algumas horas, propôs alimentar aquelas pessoas. Mas quem tinha algo para comer possuía apenas pouca coisa e então prontifiquei-me, oferecendo os dois pães que me restavam. Um dos companheiros de Jesus que era pescador apresentou-lhe três peixes cozidos e conservados para grandes viagens e foi só. Mas aquele homem enigmático aceitou as exíguas oferendas e pediu-nos que juntássemos alguns cestos, nos quais ele quebrava os pães e os peixes em pedacinhos e, acreditem!, os cestos ficaram cheios e do conteúdo todo mundo comeu, ficando saciados – eram milhares de pessoas!
De outra feita, caminhava com eles quando um homem cego – de nascença, segundo disseram – foi apresentado a Jesus para que o curasse e ele visse a luz do dia pela primeira vez em sua vida. Sabem o que Ele fez? Cuspiu no chão e depois tomou a terra cuspida nas mãos, misturou-a com um dedo e aplicou a mistura sobre os olhos sem vida daquele cego, mandando-o em seguida que os abrisse. Feito isso, o cego – Bartimeu era seu nome, soube depois – sorriu e chorou, pois via tudo em volta, e assim prostrou-se aos pés de Jesus, agradecido. Quando ele se foi, levando consigo a alegria daquele momento sublime, os companheiros do Rabi – agora eu já podia chamá-lo assim! – o questionaram, perguntando se aquele homem ou seus pais haviam pecado para que ele nascesse cego. Entretanto, Jesus disse apenas que não havia pecado na história, porquanto Bartimeu tinha nascido somente para dar testemunho do Reino dos Céus.
Eu não compreendi essa explicação, mas observei, durante o tempo que caminhei ao Seu lado, que Jesus não perdia ocasião para ensinar, doando-se de boa vontade a quem o procurasse, até mesmo àqueles fariseus pomposos que não gostavam dele e o confrontavam com as tradições de nosso povo, as quais o dito Filho do Homem procurava renovar com o ensinamento do que Ele dizia ser a Verdade: “Ouvistes o que foi dito, eu porém vos digo...” Então não eram verdadeiras as lições e as leis de Moisés e dos antigos profetas de nossa gente? Mas era assim que Jesus ensinava e desejava que entendêssemos. Mas como entender o que ele dizia e fazia? Eram coisas assombrosas, pois até mesmo os mortos ele trazia de volta, como vi com meus próprios olhos em duas oportunidades!
Eu pensava nessas coisas todas, certa noite, meditando nas contradições entre os ensinos novos e antigos, bem como nos prodígios realizados por esse Jesus e naqueles narrados nas Escrituras e protagonizados por Elias e Moisés, quando o Rabi, parecendo ler meus pensamentos, aproximou-se de mim e falou:
– Ainda não compreendes, Joaquim? E, no entanto, tu bebeste daquele vinho em Caná. Aprende que foi para isto que vim ao mundo, por ordem de meu Pai, para dispensar um vinho mais saboroso a todos os homens, a fim de que despertem para o sentido da vida em razão do futuro que os aguarda como filhos bem amados de Deus. Vê bem, Joaquim: os homens vivem perdidos nas trevas da própria ignorância, pois não compreendem o que veem e o que escutam, negando a verdade diante de seus olhos pelo costume do passado. Dia virá em que maldirão terem desprezado estes momentos preciosos de minha presença junto a eles. Mas é necessário que assim seja, para que se cumpram as profecias e todos entendam, enfim, que eu venho da parte de meu Pai para oferecer mão segura àqueles que, vendo a luz do Alto, teimam em permanecer no abismo das sombras. Aprende, ainda, que eu vim trazer a água viva que dessedenta por completo, para que os homens, insaciáveis, possam por si mesmos transformá-la no vinho bom que tornará mais saborosos os relacionamentos, fortalecendo-os no poder do amor que liberta e conclama à união das almas em torno da Vontade do Altíssimo...


2 – A filha desaparecida

“Aquele que ama a seu pai ou a sua mãe, mais do que a mim, de mim não é digno; aquele que ama a seu filho ou a sua filha, mais do que a mim, de mim não é digno.”
(Mateus, 10:37)

Desde que ficara viúvo, o tapeceiro Jobede só tinha olhos para a pequena Míriam, que crescia ao seu lado como as flores nos jardins, embelezando-se e esparzindo beleza e graça, a todos cativando com sua simpatia. Por conta disso, a alma de Jobede era só satisfação e seu coração de pai compreensivelmente egoísta não admitia separar-se daquela que, para ele, era a razão da existência.
Naqueles dias, corria pela Palestina a notícia de que um certo profeta realizava prodígios dizendo-se o filho de Deus. Blasfêmia! Jobede cuspia de lado ao ouvir esses relatos, zeloso de sua condição de seguidor de Moisés, embora mantendo-se à margem das disputas religiosas tão ao gosto dos fariseus de seu tempo.
Não sendo um homem rico nem assíduo frequentador da Sinagoga, Jobede não dispunha de regalias por lhe faltar o status social e assim não tinha amigos, uma vez que escolhera isolar-se de tudo e de todos para devotar-se quase que unicamente à criação de sua filha.
O trabalho, que lhe devia trazer contentamento e algum sucesso financeiro, era negligenciado e Jobede cuidava só do suficiente para prover as necessidades de sua exígua família, de modo que a clientela rareava.
Míriam, a essa altura, era já uma jovem em idade de se consorciar em casamento, mas seu pai reprovava todos os pretendentes, pretextando os mais diversos motivos, e a menina, submissa ao poder paterno, aguardava o dia em que também realizaria o sonho de encontrar um marido e ter filhos, honrando assim as mais caras tradições de seu povo.
Enquanto esperava, ela colaborava com seu pai nos cuidados da casa e desse modo, certo dia, teve de ir à fonte buscar água. Em casa, Jobede entregava-se aos afazeres costumeiros e percebeu o Sol descrever sua parábola na direção do poente e se assustou ao notar que Míriam ainda não regressara.
Incontinenti, ele abriu a porta e tomou o caminho da fonte, não muito distante de sua casa, e descobriu, desolado, que sua filha não estava lá. Para seu infortúnio, das pessoas que indagava sobre o paradeiro da menina só colhia respostas vãs.
A noite caía, trazendo em seu manto estrelado a promessa de mais um dia de calor, mas para Jobede era o prenúncio de amargurosas penas, pois sem a luz de seus olhos, identificada em sua pequena e doce Míriam, o que esperar?
Não, esperar é o que ele não podia e assim decidiu buscar providências imediatas junto às autoridades locais, malgrado a hora imprópria. Sua primeira iniciativa, nesse sentido, foi buscar a representação do Templo, na sinagoga, cioso de seus deveres perante o Judaísmo.
Lá, contudo, não encontrou quem lhe atendesse aos rogos e por isso, constrangido, dirigiu-se à administração pública romana, humilhando-se ante o invasor. Mas também aí Jobede conheceu o fracasso, sendo recebido com indiferença e ironia ao revelar a razão de seu desespero.
Teve de retornar a casa refreando a custo a dor da decepção misturada à agonia que dilacerava as fibras mais sensíveis de sua alma de pai. Seu drama não era em vão, pois sabia que ninguém estava seguro naqueles tempos, em que tudo era motivo para atos de violência criminosa e o desrespeito grassava.
Certamente – e era com enorme pesar que ele assim refletia – sua filha fora raptada, como tantas outras mulheres e mesmo homens jovens e fortes, e àquela hora já deveria estar longe, sabe-se lá onde, entregue à sanha de seus captores que a escravizariam, vendendo-a a bom dinheiro graças à beleza e aos dotes físicos de Míriam, para deleite de homens viciosos e cruéis ou a satisfação de alguma família em Roma ou em qualquer outra parte do mundo.
Que fazer? Com o coração confrangido, Jobede entregava-se às lágrimas incessantes e aos pensamentos amargos, lastimando sua situação. Nesse transe amargurado, uma ideia pousou-lhe na mente e ele tentou afastá-la, revoltado com mais essa contrariedade a aumentar-lhe o sofrimento. Mas a ideia lá estava, insistente, a apontar para sua mente torturada e seu coração dilacerado que só havia uma alternativa, uma única solução para seu caso: recorrer ao “odioso” Nazareno...


3 – A filha leprosa

 “Bem aventurados os pobres de espírito, porque deles é o reino dos céus.”
(Mateus, 5:3)

Naquele dia, Jesus tinha se afastado demais do roteiro habitual que cumpria junto com seus discípulos mais chegados e encontrava-se em zona menos habitada nas margens do grande lago de Tiberíades. Com o Mestre seguiam André, João, Tiago e Natanael, sendo que os outros com eles se reuniriam mais tarde, conforme haviam combinado, nas proximidades de Cafarnaum. Anoitecia rapidamente e o Sol, lançando seus últimos raios sobre a face sombria do mundo, iluminou à distância as paredes brancas de humilde casinhola. O grupo para lá se dirigiu, em busca de pouso e repasto, no que foi muito bem assistido pelos anfitriões, reconhecendo nos visitantes não só os viajantes sedentos e famintos que demonstravam ser, mas, sobretudo, a oportunidade de servir em nome da misericórdia do Senhor, uma vez que assim ditava a Lei.
Após a refeição, servida com simplicidade e muita solicitude por parte dos donos da casa, Jesus e seus seguidores tomaram os lugares onde repousariam do cansaço do dia, não sem antes elevarem o pensamento numa prece a Deus, pedindo principalmente as bênçãos do Alto para o lar que os abrigava de momento. Levantaram-se, contudo, antes que a luz do Sol se irradiasse clareando aquelas paragens, de modo que seus anfitriões ainda dormiam. À frente de seu pequeno grupo de seguidores, o Mestre abriu a porta e todos deixaram aquela casa, tomando o rumo da colina próxima, atrás da qual tomariam a direção da casa de Pedro.
Antes de seguirem viagem, porém, viram Jesus voltar-se e observar a humilde residência ainda mergulhada na penumbra. O Senhor demorou-se nessa contemplação até que os primeiros raios do Astro Rei modificassem as cores da paisagem, espantando as sombras da madrugada, para mais uma jornada em favor do progresso dos homens. Nesse momento, a porta da casa se abria, denotando que a vida retomava seu dinamismo ali, e Jesus principiou a descer a pequena elevação, indo ao encontro do casal que iniciava sua rotina. Ambos se surpreenderam ao revê-lo, pois não era comum que os visitantes retornassem após terem partido antes da aurora. E notaram como os raios de Sol emprestavam um brilho diferente àquele homem, como se a própria luz fosse parte dele.
– Que desejas, Senhor? – perguntou, respeitoso, o dono da casa, estranhando a presença do Rabi, a quem ele não conhecia senão por ter pernoitado ali.
Jesus foi direto:
– Há mais alguém na casa além de vocês, não é? Vocês têm filhos?
O casal se entreolha, ainda mais surpreso, e o homem responde, depois de ser instado por sua mulher a dizer a verdade:
– Senhor, nós temos uma filha que foi a alegria de nossa pobre existência até contrair a pavorosa doença que nos rebaixa a dignidade. Como sabes, as autoridades, por medo do contágio, não permitem que as vítimas da lepra convivam livremente com as pessoas normais. Mas nós não queríamos nos separar de nossa pequena Miriam, a quem amamos acima de tudo nesta vida, e assim nos afastamos de todos, vindo viver neste local ermo. Aos poucos parentes e amigos que ainda nos procuram, informamos que nossa filha morreu, num dia em que aproximou-se demais do mar e foi tragada pelas águas. Desde então nós a ocultamos das vistas curiosas, poupando-a do opróbrio e, de nossa parte, evitando o sofrimento que nos mataria a ambos se a execrássemos. O que sofremos vendo-a assim, doente, é demasiado, Senhor, mas o remorso seria ainda mais doloroso... mas sei que o bom Deus nos perdoará a desobediência às nossas autoridades.
Compadecido daquela dor, o Cristo faz-lhes um pedido:
– Deixem-me ver a menina.
 Outra vez o homem dirige o olhar para sua mulher e dela recebe o assentimento. Por alguma razão, era difícil negar algo àquele desconhecido, cujo olhar parecia ter o poder de devassar os recessos mais íntimos das criaturas. Pensando assim, o dono da casa levou Jesus aos aposentos onde sua filha repousava, coberta por um alvo lençol, sob o qual era possível adivinhar as úlceras a partir do que o rosto da menina apresentava.
Nesse momento, a garota, que beirava uns dez anos de idade, abriu os olhos e sorriu, quer dizer, sorria o quanto as deformidades do rosto lhe permitiam. Ela não se espantou ao ver o desconhecido ao lado de seus pais e foi justamente a ele que ela se dirigiu:
– Eu sonhei que você vinha!
Jesus sorriu-lhe de volta e impôs suas mãos sobre ela, dizendo:
– Sim, eu vim, para que todos tenham vida, pois esta é a vontade de meu Pai, que está nos Céus.
Em seguida, ordenou aos pais da menina que lhe dessem um banho e retirou-se, buscando outra vez a companhia de seus discípulos. Ao transpor a porta da casa, o Mestre, que também é nosso Médico das Almas, pôde ouvir os gritos chorosos de alegria dos pais daquela criança, que tinha suas chagas curadas à medida que a água do banho lavava as impurezas de seu corpo infantil...


4 – A alegria do pastor

“Se me amais, guardai meus mandamentos. E eu rogarei ao Pai, e Ele vos dará outro Consolador, para que fique eternamente convosco.”
(João, 14:15 a 17 e 26)
                                                                 
Ele se recordava... Fazia, sim, muito tempo, desde que era um rapazote e pastoreava ovelhas nas cercanias pedregosas de Belém. Vivia despreocupado então, atento unicamente ao cuidado que devia ter para com o pequeno rebanho de seu pai, do qual provinha o sustento da família. Sim, muito tempo se passou. Hoje ele tinha sua própria família: tivera mulher que lhe dera três filhos e agora também se alegrava com a companhia serena dos dois netinhos que eram a razão de sua viuvez. Deus achara por bem lhe tirar a esposa, vitimada por uma doença estranha que nem mesmo os feiticeiros conseguiram debelar, mas o premiara com o encanto do sorriso de duas lindas crianças que a todo momento o solicitavam chamando-o de vovô, principalmente quando queriam ouvir histórias antigas. E ele então recordava...
Naquela noite, os animais pareciam indóceis, agitados por algum motivo que ele não compreendia. Já deveriam estar dormindo, como de costume, mas algo os inquietava e, percebendo que os balidos não cessavam, ele dirigiu-se ao redil e espantou-se vendo que as ovelhas olhavam para o alto. Ele fez o mesmo e, coisa estranha!, havia no céu uma como estrela diferente das outras: seu brilho parecia escorrer na direção da terra; reparando bem, era como se ela apontasse para algum lugar na terra que era ali mesmo, em Belém. O que significaria tudo aquilo? Assim como os animais, ele também se assustara e instintivamente abriu a portinhola do cercado e as ovelhas de seu pai precipitaram-se para a frente, num movimento que o fez despertar de seu breve torpor, seguindo atrás delas, que não poderiam perder-se ou ele sofreria a fúria de seu pai.
Os animais só pararam na estrebaria do velho Joaquim, um homem bondoso que a todos tratava com gentileza. Ali, ao lado de alguns jumentos, bois e vacas, suas ovelhas reuniam-se em torno de uma das manjedouras e ele aproximou-se, curioso, tanto mais porque um homem e uma mulher se ajoelhavam ao lado de um recém-nascido que dormia placidamente no cocho improvisado como berço. Uma força inexplicável o fez ajoelhar-se também e ele orou a Deus, o Deus de Abraão, de Isaac e de Jacó, os pais espirituais de seu povo. Ele recordava esse episódio com a mesma emoção experimentada naquela noite e seus netinhos viam as lágrimas caírem de seus olhos e, a cada vez que isso acontecia, eles faziam a mesma pergunta:
– Vovô, você está chorando com saudade de Jesus?
“Sim”, ele respondia, acrescentando ter sido dos primeiros a testemunhar o nascimento do Messias, uma vez que, morando muito perto da estrebaria, pôde oferecer alguma colaboração aos pais do menino, Maria e o carpinteiro José, e até mesmo observou os três visitantes estrangeiros que também foram prestar homenagem ao Salvador do mundo.
– Naquela noite, meus filhos – ele voltava a confidenciar às crianças muito amadas –, a Terra inteira se iluminou quando nosso Deus derramou a expressão mais eloquente de seu amor por cada um de seus filhos rebeldes, que somos todos nós, porquanto pudemos ouvir, os que estávamos lá, vinda das esferas celestiais, a voz que até hoje ecoa não nos meus ouvidos, mas na região mais profunda de minha consciência: “Glória a Deus nas alturas e paz na Terra aos homens de boa vontade”...
– Mas por que Ele morreu, vovô? – as crianças se referiam a Jesus, sobre quem o ancião falava e que havia sido crucificado alguns anos antes.
– Não é só saudade desse bondoso Amigo, meus queridos filhos – tentava explicar o velhinho. – Choro, principalmente, condoído de nossa condição moral, pois fomos, aqueles de nós que O expulsamos daqui, incapazes tanto de ver a grande Luz que Ele nos trazia, compadecido, por Sua vez, de nossa cegueira espiritual, quanto de reconhecermos a mensagem de paz de que era portador, da parte do Deus infinitamente grande em seu amor pelos homens.
– E agora, vovô, o que será de nós? – voltavam a questionar os pequenos, demonstrando receio pelos dias que viriam.
– Confiemos, meus filhos, pois Jesus nos deixou a esperança ao dizer que não ficaríamos órfãos após Sua partida. Haveremos de ser consolados um dia, conforme Ele nos prometeu. E enquanto esse dia não chega para a redenção de nossas almas sofredoras, direcionemos a Deus o apelo em favor de nós mesmos e de todos os nossos irmãos, através da prece que Ele nos ensinou.
E assim, contritos, avô e netos rezaram em voz alta o “Pai nosso”, sem se aperceberem de que suas palavras, singelamente pronunciadas, ressoavam no espaço como música cariciosa que se elevava aos Céus:
– Senhor Deus, nosso Pai que estais em toda parte, seja vosso nome reverenciado em todo o Universo que criastes; que a vossa santa vontade faça-se em nós, conduzindo-nos pelos caminhos do mundo, tanto quanto nos amparando quando daqui partirmos; que o vosso Reino de amor e justiça acerque-se de nós e cresça em nossos corações ansiosos de paz; dai-nos o pão da vida e ensina-nos, Senhor, a perdoar aos homens que nos ofenderem como desejamos que Vós nos perdoeis os pecados; mas não permitais, Senhor, que novamente cedamos à tentação dos erros, para que não nos aconteça o pior. Assim seja!


5 – Nádia, ou O noivo equivocado

“Tomai sobre vós o meu jugo, e aprendei de mim que sou manso e humilde de coração, e achareis descanso para as vossas almas.”
(Mateus, 11:28 a 30)
                                   
Eliakim, o prometido de Nádia, não via com bons olhos a mudança operada no comportamento de sua amada desde que o tal profeta nazareno aparecera em Jerusalém. A moça efetivamente não era mais a mesma, agora andava arredia, cismadora, os olhos estranhamente tristes, com um brilho diferente no olhar. Que sortilégio a transformara assim? Fora ele, esse tal Jesus de Nazaré, o responsável por isso? Tinha de ser, pensava Eliakim, pois sua Nádia, com quem se casaria tão logo ele preparasse o dote dos esponsais, era uma menina doce mas dinâmica, apaixonada e apaixonante, e ele sentia-se correspondido em seus afetos. No entanto...
Nádia era, sim, simpatizante do Nazareno e não perdia oportunidade de ouvir suas belas lições, quando o podia, despreocupando-se de todo o resto. Jovem obediente aos reclamos de seus pais, sendo cumpridora de seus deveres familiares, ainda assim entendia ser muito mais importante renovar seus sentimentos e ideais com os ensinos proporcionados por aquele Jesus que ela já amava acima de tudo, vendo nele a expressão da Divindade, reconhecendo-O de fato como o Filho de Deus. Um dia, pensava, seu amado Eliakim também se entregaria a esse amor maior que o mundo, tão grande quanto inexplicável que tomava todo seu ser, e a vida a dois seria então completa.
O que ela não sabia, porém, é que seu prometido, entregue às perturbações próprias de sua personalidade insegura, seguia-a de longe e observava, à distância, como Nádia se misturava à turba de maltrapilhos que se amontoava para ouvir e ver o tal Profeta. Eliakim não compreendia como tanta gente se deixava enfeitiçar pelas estranhas palavras daquele homem que falava de um reino que não era da Terra, mas que poderia ser construído no próprio coração dos interessados. “Como?”, ele se perguntava, em meio às angústias do ciúme e da inveja, acrescidas pela irritação e pela revolta em que se consumia.
Mas as emoções desencontradas não o deixavam raciocinar e as palavras do Nazareno não penetravam sua mente a não ser para aumentar ainda mais seu desespero, uma vez que cada palavra ouvida era como uma punhalada em seu próprio peito e nessa comoção ele pensava que sua Nádia, assim como lhe acontecia, também estava enlouquecida por causa daquele homem. Era preciso fazer algo ante tal perigo e assim Eliakim elaborou um plano: primeiro, tentaria demover sua amada quanto a continuar nessa loucura; caso não lograsse êxito, recorreria até mesmo às autoridades do Templo, buscando salvar sua noiva, uma vez que os pais dela pareciam não se importar com esse fato, pois lhe diziam que Nádia, sempre ajuizada, estava mais colaborativa, muito mais responsável que antes, aparentando ter amadurecido muito nesses últimos tempos, creditando tudo isso à proximidade do casamento e não aos estranhos ensinamentos do Profeta.
Pois bem, foi com o coração oprimido por cruéis pensamentos que Eliakim afinal procurou pela noiva amada e lhe falou, com ela altercando, presa das mais angustiosas emoções, nestes termos:
– Nádia, como futuro marido teu, não admito e mesmo te proíbo que continues ouvindo as idéias loucas desse profeta insensato. Como minha prometida e, brevemente, minha esposa, terás de me obedecer!
Nádia, contudo, apresentava-se serena e firme, confundindo Eliakim:
– Já não tens esse poder, meu querido – disse ela, demonstrando profunda compaixão por seu prometido –, pois agora compreendo a Verdade e já sirvo ao Cristo com toda a força de minha alma. E tu me darias grande alegria se compartilhasses desses santos ideais, já que tocaste neste assunto, que vejo ser unicamente da esfera pessoal de cada um. Lamento que estejas tão contrariado, mas se compreenderes do que se trata estar com Jesus, que me ensina a amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a mim mesma, certamente mudarias de idéia e, juntos, seríamos felizes em nossa união futura...
Eliakim não a deixou terminar, bradando raivoso:
– Nunca, Nádia! Não posso dividir-te com outro homem nem por pensamento! Tu és minha. Minha! Não participarei dessa loucura! Estás enfeitiçada por esse profeta que perturba nossa gente e desagrada aos nossos maiores! Ele te desgraçou! Eu te ordeno que te apartes dele o quanto antes!
Porém a moça mantinha-se serena e seu olhar tranquilo transtornava ainda mais o espírito inquieto de seu noivo, que num ímpeto violento distende os braços na direção do pescoço da moça. Seus olhos injetados deixavam transparecer um brilho estranho que lhe modificava as feições e seu rosto, então, era um misto de horror e desespero a inspirar medo e pavor. Nádia, no entanto, com sua serenidade impassível deteve-o no gesto impensado, com sua voz firme e carregada de potente magnetismo:
– Pelo Cristo, nosso Senhor, não te atrevas!
Aquelas palavras paralisaram Eliakim e suas intenções. Num gesto brusco, ele liberta-se da constrição que o retivera por um segundo e foge pelas ruelas daquela parte de Jerusalém e some na noite, enquanto Nádia, envolta em pranto, retorna à casa de seus pais.
Mas naquela noite mesmo o noivo tresvariado correu na direção do Templo, onde buscou entrevistar-se com o Sumo Sacerdote, oferecendo-se para facilitar a prisão do tal Jesus, pois sabia onde encontrá-lo. O homem poderoso à frente, contudo, disparou uma gargalhada que desconcertou Eliakim:
– Tolo! – disse ele – Tu chegas muito tarde. Já entramos em combinação com um dos seguidores desse Jesus e esta noite mesmo ele estará em nossas mãos. Vai-te!
Expulso do Templo, Eliakim deixa-se ficar nas cercanias e logo observa o movimento dos soldados que trazem o Profeta preso, que a partir daquele momento experimentaria a sanha dos homens maus e ofereceria a própria vida em sacrifício para a redenção da Humanidade.
Quanto a Nádia, ela acompanha os acontecimentos que se desdobram após a prisão do Mestre e presencia, destemida, sua morte infamante na cruz, assim como estaria, mais tarde, entre as mulheres que no terceiro dia após a crucificação foram ao sepulcro e exultaram com a notícia da ressurreição do Senhor. Nascia ali, em seu coração, a certeza quanto às palavras ouvidas de seu Mestre tão querido, pois não era somente a consolação que Ele trazia ao mundo, aos homens que se dispusessem a ouvi-lo. Era, sobretudo, a informação verdadeira acerca do Reino nos Céus, o reino de Deus que se instala na alma daquele que escuta e realmente ouve, que vê e verdadeiramente enxerga a Realidade do Espírito imortal. Nascia no coração de Nádia, portanto, seu compromisso com o Cristo, um compromisso do qual ela não se desviaria jamais e no qual incluía seu amado Eliakim, a quem, sabia no íntimo de seu ser, estava ligada pelos imponderáveis laços do amor e resgataria, um dia, dos braços da impenitência para enfim libarem a felicidade a dois, em nome daquele que é, para sempre, o Caminho, a Verdade e a Vida...


6 – Flores no deserto

“O labor das vossas mãos fornecerá o pão terrestre ao corpo, mas as vossas almas são serão esquecidas. Eu, o divino jardineiro, as cultivo no silêncio dos vossos pensamentos.”
(O Espírito de Verdade, ESE, cap. VI, item 6)

“Senhor”, começou Felipe, dirigindo-se a Jesus, o novo profeta que era a sensação da Palestina, sendo adorado como o Filho de Deus por uns e detestado por outros; os primeiros o viam como o Messias que veio resgatar o povo judeu da situação humilhante em que vivia, sob o domínio de Roma; os últimos, porém, negavam-lhe essa condição, tendo-o como um blasfemo que distorcia as determinações da lei de Moisés, que era, para eles, a própria expressão da vontade de Deus. O coração de Felipe dividia-se ante os pensamentos conflitantes, até porque seus próprios pais não conseguiam se pôr de acordo em relação a tais questões. A que creditar tudo isso, pois os ensinamentos de Jesus eram os mais puros, os mais sublimes e Ele só falava de amor e perdão, de humildade e concórdia, de união e paz? Quem soubesse vivenciá-los estaria liberto dos efeitos provocados pela dura circunstância da vida humana na Terra; mas, então, por que tanta dificuldade em aceitar esses ensinos?
Essas dúvidas, Felipe as levava ao Senhor certo de que as teria dirimidas, porquanto via em Jesus um enviado dos Céus para dessedentar as almas sequiosas do conhecimento acerca da libertação das penosas amarras da vida material. Onde, senão nos céus descritos pelos antepassados, encontrariam a resposta às inquietações da mente e o alívio para as agruras morais a que o povo judeu estava submetido? Jesus era, como dissera algumas vezes, o caminho para a verdade que engrandece a vida e Felipe assim também acreditava. E foi com essa fé que ele um dia aproximou-se do Senhor para interrogá-lo:
– Em que consiste vossa missão entre nós, uma vez que agradais a uns e causais temores a outros, pois assim observo no comportamento de meus concidadãos? Minha casa, mesmo, está dividida: enquanto minha mãe concorda com vossas ponderações, enchendo o coração de doces esperanças, meu pai não vê em vossas pregações senão uma tentativa de sublevar o povo. Afinal, Senhor, a que viestes?
Jesus pousou em Felipe seu olhar compassivo, admirado da agudeza mental do discípulo, e expôs a ele seu programa de trabalho, que abrangia toda a Humanidade:
– Venho, Felipe, da parte de meu Pai, conclamar os homens a uma tarefa comum, porquanto somos todos filhos do Altíssimo e a Ele devemos amar acima de todas as coisas, como já foi dito. Lembras-te também da parábola do Filho Pródigo, para quem as portas da casa paterna estão sempre abertas, pois meu Pai não quer que seus filhos amados continuem sofrendo nas trevas da ignorância e por isso me enviou, para tornar conhecida a Verdade de seu Reino de paz, amor, justiça e misericórdia. Eu vim, Felipe, para tornar mais saborosa a vida do homem na Terra, mesmo em meio à dureza dos corações que ainda não compreendem, mesmo em meio às asperezas do caminho escolhido por quem ainda está cego para a luz do entendimento. Eu vim, Felipe, para estender a mão segura àqueles que desejam a salvação de si mesmos e buscam trilhar os caminhos da elevação espiritual. A Boa Nova, da qual sou o mensageiro, é essa luz que transformará a noite escura da Terra no dia claro das alegrias celestiais, quando o homem enfim transformado terá bebido da água que ofereço a fim de que se dessedente e passe a trabalhar pela própria renovação moral. Eu vim, meu amigo, para espalhar as sementes de vida eterna que germinarão com a força dos séculos e produzirão as flores da verdadeira alegria no ressequido deserto do coração dos homens, que são também meus bem amados. Eu sou, Felipe, o bom pastor que dá a vida por suas ovelhas, para que elas não se percam nos espinheiros do mal e se precipitem depois no abismo do infortúnio que é consequência daquele. Eu vim, portanto, para que todos tenham vida plena, porque amo a todos, pois sem mim vocês padecem nos descaminhos do erro; e, sem vocês, eu sofro na solidão!


7 – À hora extrema

“E a outro disse Jesus: Segue-me. E ele disse: Senhor, permite-me que eu vá primeiro enterrar a meu pai. E Jesus lhe respondeu: Deixa que os mortos enterrem os seus mortos, e tu, vai, e anuncia o poder de Deus.”
(Lucas, 9:59 e 60)

Natanael foi daqueles que, acompanhando Jesus na ocasião em que informaram ao Mestre sobre a morte de Lázaro, postaram-se em frente ao sepulcro, na aldeia de Betânia, e ouviram o Senhor dar a ordem, com seu verbo pleno de autoridade, para que seu amigo voltasse à vida, afirmando contudo que ele não morrera. Depois do ocorrido, o discípulo procurou o Filho do Homem para expor uma dúvida:
– Senhor, que é a vida para nós, assim como a morte, que parece ser o fim de tudo? Quando efetivamente morremos, se disseste a Lázaro que voltasse a viver embora ele estivesse morto?
Jesus pousou no discípulo seu olhar compassivo e indagou:
– Natanael, já viste, por certo, o que acontece aos caroços de tâmaras quando cultivados ou simplesmente jogados ao monturo, não é?
– Sim, Mestre, eles logo germinam e novas tamareiras brotam dali.
O Rabi assentiu e continuou interrogando:
– E o que te parece que seja mais importante: os caroços ou a planta tenra que dorme em latência no interior de cada um deles?
Natanael meditou um pouco e expôs seu pensamento:
– Reconheço, Senhor, que a importância do caroço é unicamente a de reter temporariamente a planta que, ao germinar, fará muito mais pelo bem geral, ao passo que o caroço jaz dispensável após cumprir seu papel.
– Muito bem, Natanael – ponderou o Cristo. – Como podes observar, para que a planta nova nasça é preciso que a semente morra, enterrada no solo que a abriga. Assim também com a alma, que palpita no envoltório corporal e se liberta tão logo este deixe de oferecer-lhe as condições de manifestação. Uma vez liberta, a alma empreende seu voo em demanda de uma das muitas moradas da casa de nosso Pai para refazer-se e, se necessário, renascer outra vez na carne e continuar seu aprendizado no rumo da Perfeição.
– Senhor, segundo falas, devo entender que a vida do homem é um constante nascer e morrer até que a semente que ele é finalmente produza alguns frutos?
– É preciso reconhecer, Natanael, que toda oportunidade que o Pai oferece a cada um de seus filhos muito amados traz em si mesma a possibilidade de produção desses frutos, que poderiam ser sempre doces. Mas a incúria dos homens faz com que os frutos sejam comumente amargos. Desse modo, eles padecerão as dores da morte e dos renascimentos na carne vezes sem conta, até que aprendam a fazer a vontade de nosso Pai.
Natanael silenciou, tentando penetrar nas misteriosas quanto esclarecedoras palavras de Jesus. Seu entendimento seria facilitado, porém, nos dias angustiosos que se sucederam à crucificação do Senhor e se transformaram em momentos de imorredoura alegria com a notícia da ressurreição. Assim, quando Jesus, ressurreto, aparece a seus apóstolos, Natanael finalmente compreende e o Cristo, desejoso de cooperar em definitivo com o discípulo, dirige-lhe o verbo revelador:
– Vê, Natanael? A semente morre para que a árvore possa continuar a vida. Essa é a vontade de meu Pai: que os homens despertem para o fato de que a vida deve vencer a morte e esta não seja mais o espectro da tristeza à beira do túmulo, mas o prenúncio das alegrias celestiais no reino da Verdade...


8 – Imensa compaixão

“Eu me sinto profundamente tocado de compaixão pelas vossas angústias, pela vossa imensa fraqueza, para não estender a mão em socorro dos infelizes desgarrados que, vendo o céu, se deixam resvalar no abismo do erro.”
(O Espírito de Verdade, ESE, cap. VI, item 5)

– Mamãe, conte de novo aquela história!
O pedido da pequena Ester não surpreendeu sua mãe, a viúva Deodeth, acostumada, nos últimos anos, a tais solicitações desde a primeira vez que contara à menina o modo como sua morte fora evitada, tampos atrás.
Deodeth lembrava-se muito bem daquele dia. Fazia pouco seu marido havia morrido e sua pequena Ester, então uma criança de quatro anos de idade, repentinamente adoecera e não havia meio de fazê-la recuperar a saúde. Deodeth desesperava-se. Mas alguém lhe falara de um profeta judeu que realizava prodígios entre os filhos de Israel. Não valeria a pela apelar para ele, que curava cegos e leprosos e até ressuscitar os mortos?
Novo ânimo alentou o coração da viúva e ela se dispôs a buscar ajuda naquele Jesus sobre quem lhe disseram grandes coisas, em favor de sua filha agonizante. Teria que andar muito, deixando seu país até chegar à Palestina, onde empenharia seus esforços na aventura de encontrar o Profeta, de quem recebera descrições para sua identificação. Ele teria os cabelos longos e vestia uma túnica protegida por um manto. Mas muitos judeus usavam roupas assim e adotavam a cabeleira comprida, especialmente os do Norte, da região conhecida como Galileia. Não seria fácil encontrar o tal Jesus, ela pensava, mas mesmo assim tentaria, desejosa de ter sua filha salva das garras frias da morte. Mas havia um detalhe facilitador e Deodeth se prenderia a ele para encontrar o Cristo, porquanto lhe disseram também que o Salvador andava sempre acompanhado por um pequeno grupo de seguidores, composto de aproximadamente uma dezena de pessoas.
Como dizem que, quando alguma coisa precisa acontecer, todo o universo conspira em favor, não demorou muito para a viúva encontrar no caminho, vindo na direção contrária, vários homens vestidos à moda dos judeus, em alegre conversação. Examinando cada um deles, não foi difícil para Deodeth identificar Jesus entre aqueles que deveriam ser seus discípulos mais próximos e ela não perdeu tempo, passando a implorar-lhe a pretendida assistência em favor de sua amada filhinha.
– E o que foi que Ele disse, mamãe?
A menina já conhecia a história, mas sua pergunta era feita com a intenção de mostrar que prestava atenção à narrativa de Deodeth, que recordava as negativas de Jesus, para quem somente as ovelhas desgarradas de Israel seriam merecedoras de seu beneplácito. Mas a viúva insistia, afirmando que também ela era filha do mesmo Deus e portanto fazia jus aos benefícios dispensados aos judeus, ou seria esse Deus tão parcial que desprezaria quem dele precisasse? Os discípulos do Messias se enchiam de indignação ante das afirmativas da mulher e queriam expulsá-la de perto deles, mas Jesus, inexplicavelmente, alimentava o diálogo, pedindo calma a seus seguidores e asseverando à mãe de Ester que não ficava bem tirar da mesa do senhor para dar aos cachorrinhos, numa clara alusão ao fato de que sua missão se circunscrevia ao território do “povo escolhido”. Deodeth, porém, argumentava que também os cachorrinhos comiam das migalhas caídas da mesa de seu senhor, porquanto os judeus disseminavam sua cultura pela vizinhança e seu marido, por sinal, era judeu, de modo que também ela merecia uma migalha da atenção do Mestre.
Admirado da segurança moral daquela mulher, salientando jamais ter observado fé tão grande entre seus conterrâneos, Jesus a despede prometendo que sua filha estaria curada quando ela chegasse em casa, o que de fato aconteceu, para gáudio do coração de Deodeth.
– Por que Ele fez isso, mamãe?
– Por compaixão, filha – Deodeth falava com lágrimas nos olhos, como na primeira vez em que contou essa história a Ester, a quem abraçava naquele momento, contagiando a menina com sua emoção. – A imensa compaixão dele para com nossas aflições o fez derramar um pouco de seu imarcescível amor sobre meu dorido coração de mãe, em teu favor. Agradeçamos então, mais uma vez, ao Deus de teu pai e peçamos a Ele que abençoe esse Jesus que tanto bem nos fez e tanto mal recebeu em troca...


9 – Em nome de Deus

“Se tu estás fazendo a tua oferta diante do altar e te lembrares aí que teu irmão tem contra ti alguma coisa, deixa ali a tua oferta diante do altar e vai-te reconciliar primeiro com o teu irmão, e depois virás fazer a tua oferta.”
(Mateus, 5:23 e 24)

Quando João, o Batista, encontrava-se preso, por determinação do rei Herodes, aguardando a sentença que possivelmente acabaria seus dias na Terra, ele quis ter certeza de que seu primo Jesus era aquele sobre quem profetizavam as Escrituras. João sabia dessas profecias, valorizava a informação dos profetas que de tempos em tempos surgiam entre os hebreus, agora o povo judeu, porquanto ele próprio era um desses. Sua missão, que ele cumpriu a contento, fora simplesmente anunciar a chegada do Messias, aplainando as veredas por onde Jesus trilharia para levar sua mensagem ao coração dos homens.
João sabia, mas queria ter a certeza, uma vez que, trancafiado numa cela imunda do palácio de Herodes, encontrava-se quase incomunicável, tendo em Enoque, seu carcereiro, o interlocutor habitual. Dá-se que o servidor palaciano era simpático à causa do Batista e fora um dos que se permitiram batizar no rio Jordão. Por conta dessas credenciais, João o destacou para fazer as perquirições relativamente ao Cristo.
Ora, Jesus, com seu estilo peripatético, não tinha pouso certo, posto peregrinasse pelas localidades todas da Palestina e arredores, pregando a Boa Nova do Reino dos Céus e por isso Enoque entendeu que o melhor a fazer era pedir alguns dias de licença e encontrar o Mestre às margens do Tiberíades, porquanto aí ele era visto quando na Galileia.
Chegado o momento de entrevistar-se com o Rabi, o enviado de João narra-lhe as preocupações do prisioneiro de Herodes, as quais correspondiam à curiosidade mesma de Enoque, que se dirige a Jesus nestes termos:
– És tu, Senhor, de quem falam as profecias de nossos antepassados? És o emissário celestial que libertará nosso povo da escravidão em que se encontra? O Batista, ele mesmo cativo do rei Herodes, deseja que o tranqüilizes a esse respeito, pois teme a morte próxima e quer morrer sem essa dúvida, que o atormenta.
Jesus pousou seu olhar compassivo sobre Enoque e o estafeta de João sentiu-se devassado em todo seu íntimo. O poderoso magnetismo daquele homem enigmático, que o fazia ao mesmo tempo tão doce e tão enérgico, penetrava a alma de Enoque e este experimentava diferentes emoções – algumas suaves e elevadas, outras exasperantes, como se suas entranhas estivessem sendo reviradas naquele momento. E então ele implorou:
– Senhor, eu desfaleço. Que fazes em mim?
Jesus sorriu misteriosamente e falou:
– Enoque, diz a João que, assim como tuas dores secretas, provocadas pela enfermidade que há tempos te afligia, foram sanadas, os doentes encontram alívio em minha presença, tanto quanto os cegos abrem os olhos para a luz da Verdade, os leprosos são limpos de suas impurezas e os aleijados voltam a andar pela estrada que leva ao Reino dos Céus. Diz a João, Enoque, que tudo isto se faz através de mim, e não por mim mesmo, pela vontade de meu Pai, por cujo nome tudo é feito, tudo se faz e tudo se fará, para Sua imensa glória em todos os tempos. Quanto a ti, Enoque, vai e anuncia também o Reino de Deus, instalando-o primeiro no altar de teu coração.
Enoque retira-se, ainda emocionalmente abalado e surpreso. “Como Ele sabia?”, pensou, uma vez que nem mesmo ao Batista ele confessara seu deficiente estado de saúde! “Sim, Ele só pode ser, mesmo, o filho de Deus...”


10 – “Eu quero!”

“Quantos vivem na terra que algum dia, em trevas, maldirão haverem visto a luz! Ah, bem felizes sim, esses que, na expiação, foram privados da vista.”
(Vianney, cura d’Ars, ESE, cap. VIII, item 20)

Naqueles tempos, Jerusalém e a Palestina inteira, por assim dizer, regurgitavam de seres enfermos a aguardarem pacientemente o lenitivo que só o tempo lhes traria, mercê da divina Providência, uma vez que os homens versados na prática médica de então ainda não conseguiam atender a contento às especificidades de cada mazela, tornando impossível a cura de leprosos, aleijados, cegos, como os coxos e estropiados de toda sorte.
E todos lamentavam o sofrimento atroz de que se viam presas, especialmente os que padeciam da lepra, porquanto obrigados a viver longe das comunidades urbanas e de seus entes amados, para não contaminá-los com a doença que os execrava aos olhos alheios.
Dentre esses enfermos do corpo, um havia que parecia não reclamar como os demais. Ao contrário, ele se apresentava resignado e era visto muitas vezes em silêncio, a cismar possivelmente sobre as circunstâncias da vida naquelas paragens e naqueles dias difíceis para a alma humana. Era o cego Simeão.
Cego de nascença, Simeão acostumara-se a viver no escuro, mas sentia, no fundo de seu ser, que essa não era sua condição própria, pois algo no íntimo lhe dizia que ele poderia ver a luz do sol e, como tantos de seus concidadãos, alegrar-se enxergando a paisagem, as cores, a face e o riso das pessoas. Simeão sonhava com esse dia e sentia que ele não estava distante, uma vez que essa ideia lhe vibrava estranhamente no peito. E Simeão se entregava a suas meditações...
Um dia vieram lhe dizer que um novo profeta realizava curas em nome de Deus, fazendo aleijados andarem, leprosos se limparem e cegos enxergarem. Cegos enxergarem? Simeão ficou curioso: quem seria esse profeta, por onde andava , haveria a possibilidade de um encontro com ele? O coração de Simeão encheu-se de felizes expectativas. Desse informante, soube também que o profeta, a quem chamavam de Jesus, ao passo que Ele próprio se identificava como “o Filho do Homem”, numa referência simbólica ao poder supremo de Deus, costumava visitar as aldeias da Palestina falando num certo Reino dos Céus, convidando os homens a construí-lo no próprio coração, embora se demorasse mais em Jerusalém e nas cercanias do mar da Galileia, de onde provinha, tendo crescido em Nazaré.
Se era assim, haveria oportunidade de estar com esse Jesus sem precisar deslocar-se para muito longe, pensou Simeão, passando a prestar mais atenção nos acontecimentos ao seu redor, a fim de estar presente à ocasião em que sua aldeia também merecesse a providencial visita do Filho de Deus.
Não demorou muito para Simeão ouvir rumores sobre a aproximação de um ruidoso grupo de homens e mulheres e animou-se a comparecer à recepção deles na entrada da aldeia. Pediu ajuda a Zacarias, o vizinho que o havia informado quanto aos prodígios operados por Jesus, e assim ambos se juntaram à turba que aguardava a chegada do Nazareno e seus seguidores.
– Onde está ele, Zacarias, onde está esse Jesus que minh’alma aguarda desde sempre? – a voz de Simeão estava estranhamente embargada e Zacarias assustou-se:
– Ali! – disse ele apontando, esquecido de que Simeão não podia ver o que ele pretendia mostrar, mas o cego, por alguma razão, percebia a direção da voz de seu amigo e caminhou para lá. Era como se estivesse sendo atraído, mas ele não se importava por não poder resistir, porque simplesmente não o queria. Algo em seu íntimo lhe dizia para seguir em frente, que aquele era seu grande momento.
Ao chegar diante do Senhor – Simeão o sentia –, ele parou e passou a escutar. O vozerio era intenso, todos queriam algo daquele homem especial: doentes pediam-lhe um lenitivo, viúvas solicitavam consolo, pais desesperados clamavam pelos filhos escravizados ou mortos pelos romanos invasores, famintos imploravam por pão. Eram tantas as aflições que Simeão comoveu-se: poderia o Profeta resolver todos aqueles problemas, mesmo sendo ele o Filho de Deus? E envergonhou-se de sua motivação egoística. Ia retroceder, mas sentiu a vigorosa energia da mão pousada sobre seu ombro e ouviu a voz carregada de suave autoridade:
– E tu, meu amigo, que desejas de mim?
As palavras de Jesus trouxeram Simeão à realidade e ele recordou por que estava ali, mas foi ainda tomado pela compaixão que ele dirigiu-se ao Cristo:
– Senhor, não tenho o direito de pedir-Te coisa alguma, pois sinto em minha alma que vieste por outro motivo que não satisfazer as vontades de meus irmãos presos ainda a questões tão mesquinhas. Mas, se quiseres, poderás curar-me e tomar-me a teu serviço, uma vez que sinto e ouço em minha mente um chamado para algo maior que minhas meditações.  E alguma coisa me diz, Senhor, que és Tu a razão desse chamamento. Assim, se queres...
– Eu o quero, Simeão. Fica curado e segue-me, pois o Reino dos Céus é para os que recebem aqueles que meu Pai enviou e se dispõem a modificar a própria vida em função das necessidades do próximo, conquistando as alegrias celestiais. Recupera tua visão para demonstrares assim as verdades de que sou portador em nome dAquele que é todo amor, todo justiça e todo misericórdia. Abre teus olhos para a luz e mostra a teus irmãos de caminhada a trilha que conduz à Vida, para que os homens cedo despertem da cegueira em que se encontram e se libertem das cadeias da ignorância.
Simeão abriu os olhos, com efeito, e eles estavam marejados. Através das lágrimas abundantes ele via como se jamais houvesse sido privado da visão. Ele via a face serena do Cristo, as pessoas em volta implorando assistência do Senhor, e O reconhecia como aquele ser querido que o confortava em seus sonhos; via a paisagem árida de sua aldeia banhada pela luz solar; via suas mãos e seus pés e a crueza das roupas surradas que vestia. E via mais, muito mais do que seus olhos podiam mostrar: via em tudo a grandeza de Deus convidando os homens à comunhão com aquele Pai referido por Jesus, embora seus irmãos ainda não compreendessem...
Naquele momento, Simeão abraçava o compromisso com a Verdade, sendo dali por diante um sincero discípulo do Cristo.


11 – Lídia

“Eu sou o grande médico das almas, e venho trazer-vos o remédio que as há de curar. Os fracos, os sofredores e os enfermos são meus filhos prediletos, e eu os venho salvar.”
(O Espírito de Verdade, ESE, cap. VI, item 7)

Os olhos dela brilhavam. Ia, enfim, conhecer o Senhor, ouvir-lhe as palavras e dessedentar sua alma sequiosa de esclarecimentos que a fizessem entender os motivos de seu infortúnio. Sua vida, desde a infância, era marcada pela dor, pois cedo perdera os pais e só não padeceu a rudeza da fome e a desventura do abandono porque mãos piedosas se estenderam para ela. Ainda assim, Lídia lastimava silenciosamente sua sorte e esperava o dia em que seu sofrimento terminasse.
Assim, quando soube que havia um novo profeta realizando curas e promovendo a renovação das esperanças com o ensino da Verdade que liberta, conforme lhe disseram, Lídia experimentou em sentimento diferente no peito, fazendo-a acreditar que, agora sim, ela veria sua situação se modificar. Recorreria a esse Jesus que seu coração já amava e de quem o povo falava maravilhas, pois ele curava cegos, leprosos e aleijados, amparava os necessitados, os famintos do corpo e da alma. E não era ela também uma infortunada? Ele haveria de ter piedade de sua condição, oferecendo-lhe o lenitivo de que se julgava merecedora.
É que Lídia se sentia indesejável, malgrado o amparo recebido desde a infância. Percebia que as pessoas não se sentiam bem ante sua presença, muito provavelmente por sua pouca beleza física: seu rosto carecia de atrativos, apresentando um nariz por demais adunco e olhos que pareciam saltar das órbitas; seus cabelos eram ralos e difíceis de cuidar; seus dentes estragaram-se precocemente. Coroando tudo, ainda tinha aquele jeito estranho de andar, por conta das seqüelas de uma queda que deixou uma de suas pernas torta por causa de uma fratura mal consolidada. Que homem se interessaria por ela, propondo-lhe a ventura de um casamento com que pudesse construir as alegrias de um lar? Lídia sofria.
Quando finalmente Lídia pôde encontrar-se com Jesus, no dia em que a ele reuniu-se uma multidão incalculável, ela era uma das últimas, deixadas longe do Messias pelo repúdio de quem se via mais merecedor que ela mesma de aproximar-se do Salvador. Lídia não se importou. Dali de onde estava, conseguia ouvir perfeitamente as palavras cheias de verdade e poderosa energia que brotava doa lábios santos e, prodígio, Lídia podia ver Jesus e notava que os olhos do Mestre fitavam os seus, diretamente. Enlevada, ela procurava prestar atenção no que ele dizia, mas sua alma parecia transportada para outra realidade e o cérebro de Lídia só conseguiu registrar esta frase: “Vinde a mim todos vós que estais sobrecarregados com vossas dores e vossas muitas amarguras, e eu vos aliviarei, pois sou o divino médico de vossas almas e vim salvar o que estava perdido a fim de que o Reino dos Céus se instale em definitivo nos vossos corações”.
Ao final da pregação, as pessoas, na maioria, se dispersaram e Lídia voltava para a casa de sua benfeitora com o coração intranquilo, a mente alvoroçada e o corpo estranhamente febril. E foi com dificuldade que conseguiu chegar, pois parecia tomada por grave enfermidade que não a deixava caminhar direito, malgrado seu estado original. Ao vê-la, sua protetora alarmou-se: Lídia tremia de frio, pelo rigor da febre, seus olhos pareciam saltar ainda mais das órbitas e Lídia delirava. Rapidamente foi levada ao espaço que ocupava na casa para o repouso e tisanas lhe foram aplicadas, sem sucesso, e logo Lídia passou dos delírios à agonia que antecede à morte do corpo. Percebendo que nada mais podia fazer, a mulher que um dia a salvara da morte, na infância, apenas chorava, lastimando a condição de sua protegida.
Ela não podia notar, mas Lídia estava feliz naquele momento. Em seu delíquio de despedida da prisão física, da qual se libertava para adentrar a Realidade espiritual, ela mais uma vez via e ouvia Jesus e ele lhe aparecia com os braços abertos para envolvê-la num amplexo do mais puro amor, ostentando um sugestivo sorriso no rosto como prova da confiança que ela deveria ter nas palavras que repetia: “Vinde a mim todos vós, pois que sou o caminho que conduz ao meu Pai...” e a alma de Lídia então, envolta em seus trajes luminescentes, desligou-se das últimas amarras materiais e foi ter com o Mestre, em demanda do Reino dos Céus...


12 – Três cruzes

“Os efeitos da lei de amor são o melhoramento da raça humana e a felicidade durante a vida terrestre. Os mais rebeldes e viciados deverão reformar-se quando virem os benefícios produzidos pela máxima que manda não fazer aos outros o que não queremos que nos façam, mas ao contrário, fazer todo o bem que estiver ao nosso alcance.”
(Fénelon, ESE, cap. XI, item 9)

– Senhor, lembra-te de mim quando estiveres em teu reino!
A frase de Dimas, que passaria à história do Evangelho como “o bom ladrão”, ecoou no ar e não apenas Jesus a ouviu como também o outro crucificado, naquele momento remoendo silenciosa e solitariamente suas amarguras. Assim como seu companheiro, ele igualmente pôde escutar a resposta do Cristo, afirmando que Dimas, com efeito, estaria com Ele no Paraíso. Mas isso era algo que Gestos – este era seu nome – não podia compreender. Suportando a dor que os pregos perfurando sua carne nas mãos e nos pés lhe causavam, a vontade de chorar não era menor que seu orgulho ferido e nesses instantes em que se despedia da vida física ele recordava...
Sua mente, ainda que perturbada pelas dores atrozes que seu corpo sentia, voltava ao passado e novamente Gestos via-se ao lado de Dimas nas aventuras de sobrevivência, assaltando os incautos e escapando das tropas romanas que exerciam a função policial no território palestino. Para eles, era quase uma diversão envolverem-se nas escaramuças com os soldados ou com algumas vítimas armadas que tentavam resistir a suas investidas em busca de dinheiro, ouro ou qualquer coisa que pudesse ser roubada. E o fato de escaparem muitas vezes um só arranhão era motivo para comemorarem e então não regateavam no consumo de vinho.
Era uma vida boa, considerava Gestos, lamentando que essas alegrias descomprometidas e aparentemente inconsequentes tivessem fim no dia em que, por um infeliz acaso, eles toparam com a turba que seguia esse homem estranho, o Profeta que até no instante da morte os dividia.
Gestos lembrava-se muito bem daquele dia. Haviam planejado assaltar uma caravana e se deslocavam para o local por onde ela passaria quando foram surpreendidos pela pequena multidão que seguia o Nazareno. E sem se darem conta, ambos já estavam misturados com os seguidores desse Jesus e ouviram, na primeira parada que fizeram, uma das pregações do pretenso Messias. Eram palavras impressionantes, reconhecia ele, mas não o tocaram tanto quanto a Dimas, que a partir de então começou a fraquejar nas frequentes empreitadas do ganha-pão e por duas vezes ele acovardou-se na hora de eliminar um resistente mais aguerrido, comprometendo a integridade física de ambos – e tudo porque Dimas dera ouvidos ao Profeta, para quem devia-se amar ao próximo até mesmo com o sacrifício da própria vida! Onde já se viu? Gestos não compreendia.
Desse modo, Dimas já não era um bom parceiro de aventuras, tornara-se um moleirão e, pasmem!, até esmolas ele passou a dar, diminuindo os ganhos da dupla. O cúmulo se deu durante aquela páscoa em Jerusalém. Pensavam passar despercebidos, uma vez que praticamente toda a Palestina se encontrava ali, mais os judeus expatriados e os estrangeiros que vinham fazer negócios aproveitando os dias de festa: eram um prato cheio para os ladrões e espertalhões de todo tipo.
No entanto, Dimas preferiu, em vez de “trabalhar” como sempre, procurar os seguidores do Messias que havia pouco entrara na cidade montado num jumento, sendo conclamado “rei dos judeus” pelas pessoas simples do povo, dentre elas os aleijados, os miseráveis, conhecidos bandoleiros e também as prostitutas. Como ser rei de gente assim, como imaginar um reino da ralé? Gestos não entendia e muito menos aceitava que seu amigo se deixasse levar por tamanhas fantasias. 
Por causa disso foram presos numa escaramuça com soldados romanos que os reconheceram; por isso estavam ali, pagando com a própria vida a distração de Dimas com idéias estranhas. Por que ele tinha de se deixar enredar pelas palavras desse tal Jesus? Agora estava ali, todo arrependido, implorando clemência a quem também ia morrer e ainda assim fazia promessas em nome de um paraíso fictício. Gestos não compreendia esse Messias, como não entendia a loucura de seu antigo companheiro.
“Senhor, lembra-te de mim!...” – ironizava, em suas conjecturas, as palavras esperançosas de seu comparsa, parceiro na vida como na morte. Mas todos estavam morrendo, Dimas não percebia? Os três morriam e logo tudo estaria acabado! Não haveria mais Gestos, Dimas nem Jesus algum para contar a história! Então, que ideia era essa de um reino depois da morte? Só podia ser loucura e ele, Gestos, não se permitiria enlouquecer assim e nesse delíquio dava razão aos doutores da Lei que prenderam, julgaram e condenaram Jesus à morte, concordando também com a decisão de Pilatos a não ser porque o governador romano os mandou igualmente para a cruz, ao lado do “rei dos judeus”, apenas para divertimento do povaréu...
Gestos não entendia e não aceitava. Também não fazia esforços para entender, preferindo culpar seus dois companheiros de cruz pelos tormentos que experimentava. Sua ignorância e indiferença a respeito das coisas do espírito o faziam refratário ao Cristo e suas propostas de transformação interior. E sofria: por causa delas, dessas palavras amaldiçoadas pronunciadas pelo Profeta, seu amigo tornara-se um covarde; pela covardia de seu amigo deixara-se prender e agora morriam. Não havia salvação, tudo acabara. Agora, só lhes restava a cruz e o esquecimento...
Mas com sua mente em perturbação, no último instante antes do completo desfalecimento, Gestos ainda pôde ouvir a resposta do Cristo, dirigida tanto a Dimas quanto a ele próprio, pois que a registrara na própria consciência:
– Hoje mesmo estarás comigo no Paraíso!
Gestos chorou e, chorando, fechou seus olhos físicos para sempre...


13 – A ressuscitada

“Eu vim trazer fogo à terra, e que quero senão que ele se acenda? Eu pois tenho de ser batizado num batismo e quão grande não é minha angústia até que ele se conclua? Vós cuidais que eu vim trazer paz à terra? Não, vos digo eu, mas separação. Porque de hoje em diante haverá numa mesma casa cinco pessoas divididas: três contra duas e duas contra três. Estarão divididos: o pai contra o filho, e o filho contra o pai; a mãe contra a filha, e a filha contra a mãe; a sogra contra a sua nora, e a nora contra a sua sogra.”
(Lucas, 12:49-53)

Aqueles eram dias venturosos, pois o Messias caminhava pela Palestina conclamando a todos os homens de boa vontade para o esforço inigualável da construção do Reino dos Céus, que viera anunciar, no coração de cada um, a afim de que, um dia, esse Reino fosse uma realidade no ambiente tormentoso do mundo. Para que assim fosse, para que os homens despertassem para a necessidade dessa construção, implicando em transformação interior, numa adesão consciente às propostas da Boa Nova, o autoproclamado Filho do Homem realiza prodígios que a uns e a outros confundiam, embora aliviassem a dor de seus beneficiários, ainda que estes não compreendessem o que acontecia.
Sintonizado com o clima renovado daqueles dias entre os filhos de Israel, o caravaneiro Simão, sabedor do que se dera em casa de seu amigo Jairo, dispôs-se um dia a visitá-lo, encontrando-o, porém, lastimoso ao extremo, com a cabeça coberta de cinzas. Simão compadeceu-se:
– Por que choras, meu amigo? Conheço tua história e digo-te que algo semelhante ao que aconteceu em tua casa é raro, senão completamente impossível em toda Israel, quiçá no mundo inteiro. Devias estar felicíssimo e no entanto choras. Não compreendeste ainda o que o Profeta te proporcionou ao trazer tua filha à vida novamente? Pois ela, a quem amas em demasia, estava morta, como morta estava naquele momento a alegria de teu lar, não é verdade? Por que choras, então?
A simples menção do Nazareno, sem nem mesmo seu amigo ter declinado o nome de Jesus, fez aquele homem estremecer e as lágrimas se lhe tornaram mais abundantes. Sua alma era puro sofrimento, embora aos olhos do mundo ele fosse a mais afortunada das criaturas. Amargurado, ele atendeu à curiosidade de seu amigo abrindo o coração como quem rasgasse a própria carne a golpes de punhal:
– Tu não sabes, não é? – disse ele ao amigo que tentava confortá-lo. Não sabes o preço que hoje pago por aquele instante de felicidade ao ver minha filha resgatada das mãos geladas da morte. Ah, meu amigo, eu teria chorado bem menos. Choraria por um dia ou dois e me conformaria ante sua ausência, ante a tristeza da saudade. Mas agora meu pranto é permanente, porque se a alegria voltou à minha casa, como dizes, veio com ela a dor amarga da desilusão, pois é como se minha filha tivesse realmente morrido, e aquele instante trágico fosse uma espécie de prêmio para mim, poupando-me dos dias acerbos que hoje vivo. Ah, maldito Profeta!
– Não entendo, meu pobre amigo! Não manifestou Ele os dons que só um enviado do próprio Deus poderia realizar neste mundo de tantas dores, consolando tantos corações aflitos e mostrando a esperança num futuro mais condizente com os anseios mais secretos de nossas almas perturbadas pelas vicissitudes de nossa vida sacrificada ante as pungentes asperezas da matéria? O Nazareno, assim, não te prestou um enorme favor?
– Reconheço a justiça de tuas palavras, mas ou a justiça não se fez em minha casa ou se processou de uma forma bastante cruel, pois não a compreendo. Teria esse Jesus agido em nome de Deus ou veio apenas atormentar ainda mais minha pobre alma desesperada? Porque agora, veja só, não tenho mais uma vida que possa valorizar, pois Ele me tirou tudo! Minha filha foi embora atrás dele e minha pobre Sara foi com ela. Ambas enlouqueceram, entende? Foram atrás de um sonho, caminham por aí como se nunca tivessem tido casa ou família. Só os loucos fazem assim, não é? E foi Ele, esse tal de Jesus, que me tirou tudo! Eu tinha uma família, tinha a alegria de um lar, tinha uma boa esposa e uma filha encantadora. Eu tinha razões para viver. E hoje, o que tenho? Ele me tirou tudo! Tirou-me tudo e só me deixou este imenso buraco no peito!...


14 – As vozes do soldado

“Todo aquele, pois, que ouve estas minhas palavras, e as observa será comparado ao homem sábio, que edificou a sua casa sobre a rocha.”
(Mateus, 7:24 a 27; e Lucas, 6:46 a 49)

Após o drama da crucificação, o Sumo Sacerdote confabulava consigo mesmo. Havia alcançado seu propósito eliminando o perigo que o tal Jesus representava para o Judaísmo, pondo em xeque os valores ancestrais da Lei herdada de Moisés. Ainda assim, um sentimento de angústia teimava em seu peito, inquietando-o, sem que ele atinasse com sua causa. Entregue assim a esses pensamentos, não percebeu que alguém adentrara seus aposentos de trabalho.
– Senhor, perdoai-me a impertinência.
O Sumo Sacerdote levantou os olhos, saindo de suas meditações, e defrontou Malco, um dos integrantes da guarda do Templo destacados na noite anterior para a prisão do Galileu no Horto das Oliveiras. Ante a presença do subalterno, o líder religioso dos judeus recobrou seu tom fleumático e dirigiu-se ao soldado sem cumprimentá-lo:
– Que queres aqui? Por que vens se não foste chamado?
Malco sentiu-se desconfortável ante a rudeza do mandatário e até pensou em sair dali; no entanto, ele tinha fortes motivos para permanecer naquela sala, mesmo sofrendo severas admoestações. O Sumo Sacerdote percebeu que o soldado não estava bem, pois sua face se movimentava estranhamente e ele a todo momento levava as mãos à cabeça, como se tentasse afastar algo indesejável.
– Dize logo o que te traz à minha presença e vai-te, homem, pois tenho muitas ocupações!
– As vozes, senhor, são as vozes – disse Malco, quase chorando.
– Que vozes, homem, de que falas? Não compreendo.
Procurando controlar-se o quanto possível, o soldado tentou fazer-se entender, ainda com as mãos na cabeça:
– Aquele homem, senhor, o que prendemos ontem. Como sabeis, um de seus seguidores, no Horto, decepou-me uma orelha com minha própria espada, mas aquele homem, o Profeta, a pôs no lugar, enquanto recriminava o gesto de seu amigo. Mas desde então não sou mais o mesmo. Primeiro, um zumbido começou a me incomodar; depois vieram as vozes. Eu ouço a voz dele, senhor, o tempo todo a me dizer que devo embainhar minha espada, as mesmas palavras ditas ao discípulo naquela noite, afirmando que quem vive pela espada perecerá por ela...
O Sumo Sacerdote não se deixou comover e questionou com secura:
– Isso é tudo? É tudo quanto ouves? 
– Não, senhor – disse o soldado, com mais forte inflexão de tristeza em sua voz. – Também ouço a voz de minha mãe.
– Que dizes? Eu conheci tua mãe, por solicitação dela é que foste admitido no serviço do Sinédrio. E tua mãe já é morta há muitos anos! Como podes dizer que ouves a voz dela?
– É o que não compreendo, senhor. Sinto-me enlouquecer, pois não sei o que se passa comigo.
O Sumo Sacerdote não demonstrou qualquer interesse nos tormentos do rapaz, mas mesmo assim voltou a interrogá-lo:
– E o que te diz essa voz que pensas ser de tua mãe morta?
Com as duas mãos na cabeça, num gesto de quem tenta evitar ouvir o indesejável, Malco não consegue conter um soluço de pranto e desabafa:
– Fala dele! Só fala dele!
– Dele... quem?
– Desse Jesus, o homem que mandastes prender e agora está pregado naquela cruz, no Monte da Caveira!
– Não digas tolices! – irritou-se o Sumo Sacerdote. – Sabes tão bem quanto eu que tua mãe não conheceu esse blasfemo. O que ela teria a dizer sobre alguém que não conheceu? Bem vejo que enlouqueces, com efeito.
Malco, ainda mergulhado em sua dor, pareceu não se importar com a maneira rude com que era tratado e continuou, respondendo à pergunta de seu superior:
– Ela diz que esse Jesus era um justo, que fizemos mal, muito mal levando-O à morte infamante e que, por isso, vamos experimentar momentos muito amargos daqui para a frente, caso não nos arrependamos...
O religioso não deixou o soldado terminar a frase, explodindo irado:
– Arrepender-me? Arrepender-me de praticar e defender a Lei e as tradições mais sagradas de nossos ancestrais? Tresvarias, homem! Por acaso és um dos seguidores daquele impostor? Não creio fosse tua mãe a dizer-te semelhantes asneiras. E já me dou por satisfeito ante tantos despautérios. Quem pensas que és para ocupares meu tempo com tamanha impertinência? Vai-te, e não retornes à guarda até que estejas curado dessa insanidade!
Ainda segurando a cabeça com as duas mãos e com o rosto banhado em lágrimas que não conseguia estancar, Malco deixou a sala, mais transtornado que humilhado. Em sua mente, as vozes se alternavam, provocando-lhe cada vez mais confusão:
– Embainha tua espada! Fizeste mal, meu filho! Quem vive pela espada perecerá por ela! Aquele homem era um justo!...
Como o louco que se sentia, o soldado deambulava pelas ruas de Jerusalém, perdido numa nuvem de confusão, alheio aos olhares desconfiados dos passantes. Sua mente girava em torvelinhos de dúvidas e perplexidade. E sem que ele soubesse como nem por que, seus passos o conduziam ao Jardim das Oliveiras...


15 – Noite em Jerusalém

“Eu venho ensinar e consolar os pobres deserdados. Venho dizer-lhes que nivelem a sua resignação com as suas provas; que chorem, pois a dor foi consagrada no Jardim das Oliveiras, mas que esperem, porque virão anjos consoladores lhes enxugar as lágrimas.”
(O Espírito de Verdade, ESE, cap. VI, item 6)

O manto escuro da noite encobria a grande cidade de Jerusalém e nem mesmo a luz das estrelas ou as tochas colocadas aqui e ali nas ruas eram capazes de afastar as densas trevas em que os homens mergulharam após a crucificação de Jesus, naquele dia tormentoso. Era ainda a Páscoa, a cidade deveria estar em festa, mas por conta dos recentes acontecimentos o clima já não era o mesmo e, para evitar mais distúrbios, os soldados de Pilatos patrulhavam as ruas nas proximidades do palácio do governador romano.
Ainda assim, vencendo o temor, uma figura envolta em vestes negras se esgueirava pelas sombras, sorrateiramente, contornando os prédios ao redor do Templo. Era Nicanor, humilde habitante local, em missão de alta relevância junto a José, o rico senhor de Arimateia, que ali se encontrava para as festividades pascais e a quem Nicanor devia favores, devotando-lhe igualmente profundo reconhecimento. Pelos préstimos desse amigo, que não poucas vezes o socorrera em situações de infortúnio, Nicanor não podia recusar atender aos mínimos apelos de José. Por isso estava ali, arriscando a própria vida, pois tudo faria, do que lhe estivesse ao alcance, para ser útil à necessidade de seu benfeitor.
Uma vez nos aposentos de José de Arimateia, na casa que a este servia de abrigo quando em Jerusalém, Nicanor foi saudado com efusividade, embora a gravidade do momento:
– Sabia que não me faltarias, meu amigo. Em verdade, só consegui pensar em ti para a realização do que pretendo, posto te manteres à margem dos dramas que ora vivenciamos.
Com efeito, Nicanor, ainda que informado quanto às recentes ocorrências envolvendo a prisão, a condenação num julgamento sumário e a execução de Jesus, junto a outros dois homens tidos igualmente como criminosos, manteve-se de parte, porquanto nem mesmo era cristão, isto é, não se inscrevia no grupo dos seguidores habituais do Messias. Nicanor vivia para sua família e para seu trabalho, gostando de ajudar a quem precisasse, de conformidade com suas posses e possibilidades, sem para isto ser estimulado por qualquer ideologia. Fazia o bem pelo bem, conforme dizia de si para consigo e assim sentia-se feliz.
– De que se trata? – perguntou a seu anfitrião, curioso para saber por que fora chamado àquela hora da noite. José esclareceu-o, indo direto ao assunto:
– Por certo não desconheces meu interesse por Jesus, unido que estou a ele por laços familiares. O que talvez não saibas é que reclamei de Pilatos o corpo de meu sobrinho, sepultando-o provisoriamente no túmulo de um outro amigo. É minha intenção, atendendo às ponderações de minha querida prima Maria, mãe Dele, promover a transferência do corpo, para evitar que seja profanado, e é nisso que poderás ajudar-me, Nicanor.
– Que devo fazer, meu amigo? Sabes que é sempre uma grande alegria para mim o poder servir-te, em nome de nossa velha amizade.
José revela seu plano e logo ambos deixam a casa em direção ao túmulo. No caminho, reúnem-se a Pedro, que os esperava pouco além da residência do doutor da lei Nicodemos, simpatizante da causa do Cristo.
– Isso vai dar certo? – preocupou-se o pescador, dirigindo-se a José, que tratou de sossegá-lo:
– Não te aflijas, Simão. Nicanor está acima de qualquer suspeita, ninguém sequer pensará nele quando descobrirem o que aconteceu, caso venham a descobrir. Não tenhamos, pois qualquer receio. Além do mais, comprometo-me a assumir toda a responsabilidade caso isso seja necessário.
– Se é assim... – resignou-se o apóstolo.
E assim foi. Retiraram o corpo e, superando as dificuldades do transporte, instalaram-no no novo “endereço”, em local secreto apontado e sob os cuidados de Nicanor, após o que os três homens se separaram, retornando às suas ocupações, apesar das circunstâncias.
Era então a madrugada de sábado. No domingo, às primeiras hora do dia, quando Maria, a de Magdala, junto com outras mulheres, avisou ao grupo de discípulos que o corpo de Jesus não estava no sepulcro, Pedro não ligou grande importância, até porque era notória sua pouca afinidade com ela, a quem tolerava apenas por deferência ao Mestre. Mas ao ouvir de Maria que o Messias havia ressuscitado e aparecido para ela, aí o velho apóstolo inquietou-se, imaginando que Nicanor... “Não”, pensou, “Nicanor prometera segredo absoluto e não abriria a boca a qualquer um”. E sem que ninguém o notasse, Pedro afastou-se de todos e procurou o amigo de José de Arimateia, para certificar-se de que o túmulo secreto não fora violado, acreditando que a aparição de Jesus a Maria Madalena outra coisa não fosse senão um desvario da mente feminina. “Essas mulheres...” – Pedro deu de ombros.
Porém, Nicanor fez ver ao apóstolo que suas suspeitas eram mesmo descabidas, levando-o ao local que ambos haviam visitado na madrugada, em companhia de José, constatando que tudo estava intacto. Pedro suspirou aliviado, certo de que Maria fora mesmo vítima de uma alucinação.  
Contudo, de volta à convivência com os companheiros, encontrou-os ainda em torno de Madalena, que oferecia detalhes de seu encontro com o presumido Cristo ressuscitado. O pescador duvidava; afinal, por qual razão o Mestre apareceria primeiro a ela e não a um de seus discípulos mais diretos, os apóstolos? Não fazia sentido. Para completar a estranheza de Pedro, mais tarde dois meros seguidores do Messias vieram informar que O encontraram no caminho para a aldeia de Emaús e até comeram juntos, ocasião em que puderam reconhecer que era mesmo Jesus ali com eles, pelo modo como Ele repartiu o pão.
A inquietação tomou conta de Simão: “Por que a estranhos e não aos onze de Sua confiança? Jesus nos teria esquecido?”, indagava-se o apóstolo, ensimesmado. Mas não demorou muito e, estando todos juntos num salão com as portas cerradas, tanto para evitar curiosos quanto se protegerem das perseguições dos doutores da lei e dos judaístas mais exaltados, eis que Jesus lhes aparece. Apresentou-se como o Amigo de sempre, aquele que por três anos os manteve perto de Si, ensinando-os quanto às verdades do Reino dos Céus, consolando-os da enorme saudade. Voltava como o Mestre que os fazia recordar as determinações relativas à pregação que deveriam realizar a partir daquele momento, divulgando a Boa Nova. Eis que Ele vinha mais uma vez manifestar em Si mesmo a condição de Filho de Deus, mostrando-se em espírito e verdade conforme havia ensinado. O Cristo ressuscitado, que havia proclamado ser o Caminho, a Verdade e a Vida, demonstrava a seus apóstolos a realidade do Espírito imortal, sendo Seus ensinamentos a senda a ser trilhada para se alcançar a vida verdadeira, na comunhão com o Pai.
Todos os onze se encontravam admirados. O jovem João, parecendo ver um pouco mais além, escreveria, mais tarde, em suas anotações sobre a convivência com Jesus, que o Divino Amigo era a própria palavra de Deus (o Verbo divino) materializada entre eles. Tomé, embora também maravilhado daquela aparição, quis ter certeza de que Jesus se manifestava corporalmente – ou tudo não passaria de algum tipo de ilusão? Conhecendo o pensamento e o coração de seu discípulo, Jesus o chama para perto de Si e mostra-lhe as feridas que os cravos Lhe fizeram nas mãos e nos pés e deixa que Tomé as toque, para sentir que eram mesmo reais. Somente depois é que o apóstolo saberia que o corpo espiritual possui a propriedade de imitar a densidade da organização material. Naquele instante, contudo, ele entraria em contato direto com a dimensão da imortalidade, tendo plena noção da realidade espiritual, que é a própria essência da vida, durante os 40 dias em que Jesus ficou entre eles, mais uma vez devotando-se a fazer com que compreendessem a natureza de seus ensinos e saíssem a campo proclamando tais verdades, sem temor algum, ainda que fossem enviados como homens às armadilhas de lobos, mas só lobos caem nessas armadilhas, de modo que andassem e atuassem com tranquilidade, porquanto “Eu estarei sempre convosco”.
Mas chegaria a vez de Pedro. O mais velho dos apóstolos trazia o coração confrangido pelo ciúme e até mesmo uma raiva contida paralisava um falso sorriso em seu rosto. Naturalmente, nada disso passava despercebido a Jesus, pois o Filho de Deus também conhecia a alma de quem se Lhe aproximasse. Quando o Mestre enfim dirigiu a palavra ao pescador, fê-lo peremptoriamente, através de uma pergunta:
– Pedro, tu me amas?
Que pergunta era essa? O apóstolo não pode evitar que a emoção lhe fizesse derramar algumas lágrimas, mas controlou-se para responder ao Cristo:
– Senhor, tu sabes que te amo.
Sim, Pedro O amava profundamente, embora seu temperamento impetuoso muitas vezes contradissesse seus maus puros sentimentos. Simão era, sim, uma pedra bruta que somente seria burilada pelas orientações de Jesus com a força renovadora do tempo. Não fora ele capaz de negar o Messias poucas horas após haver dito que estaria constantemente ao Seu lado? Talvez por isso o Ressuscitado insistisse na pergunta:
– Pedro, tu me amas?
A cada vez – e foram três, como se com isso Jesus pretendesse comutar os três momentos em que seu apóstolo O negara –, a resposta de Simão vinha positiva e a ela Jesus ajuntava uma recomendação:
– Apascenta minhas ovelhas.
O antigo pescador, assim, era convocado a mudar de profissão, passando a ser doravante um condutor de ovelhas que em nome do Divino Pastor cuidaria do imenso rebanho do Cristo, porquanto também os gentios, os povos de cultura não-judaica, também são dessas ovelhas. De pescador de peixes a pescador de homens e, agora, pastor de ovelhas ou, melhor dizendo, auxiliar destacado do grande Pastor: a história de Simão, transformado em Pedro pelo verbo seguro e amoroso do Mestre, conhecia mais uma reviravolta e após a elevação do Senhor aos Céus ele experimentaria a força capaz de operar os prodígios a que Jesus aludia ao dizer “podeis fazer tudo que eu fiz e muito mais”. Pedro, então, ver-se-ia tomado por essa força, que é a própria energia amorosa em ação, levando-o a concluir, mais tarde, muito sabiamente, que “o amor cobre a multidão dos pecados”...


16 – À sombra das oliveiras

“A dor é uma bênção que Deus envia aos seus eleitos. Não vos aflijais quando sofrerdes, mas, ao contrário, bendizei a Deus todo-poderoso, que vos assinalou pela dor aqui para a glória no céu.”
(Um Espírito Amigo, ESE,Cap. IX, item 7)

Samuel era o rico comerciante de azeite proprietário do vasto olival plantado no planalto de Getsêmane, nas proximidades de Jerusalém. Toda aquela área era também chamada de Jardim das Oliveiras e ali, com seu consentimento, Jesus e os apóstolos costumavam se reunir e pernoitar quando em Jerusalém, aproveitando o prazer proporcionado pelo clima ameno à noite, porquanto pouco chovesse na região.
Simpatizante da causa do Messias, Samuel contribuía no suprimento das necessidades do grupo sempre que podia, ou quando se encontrava na grande capital da Judeia, posto precisar se ausentar com frequência para atender às incessantes demandas de seu comércio. Mas nas oportunidades de entreter-se com o Rabi e Seus seguidores, Samuel experimentava grande alegria em ouvir os relatos da Boa Nova do Reino dos Céus, deixando-se enlevar pelas palavras ponderosas de Jesus de Nazaré, carregadas de um estranho e cativante magnetismo que não raro transportava os ouvintes a desconhecidas dimensões emocionais.
E como costumasse amiúde acompanhar também o processo de colheita e posterior armazenamento dos frutos das oliveiras, Samuel podia observar, muitas vezes, quando Jesus se recolhia em solidão, para entrar em comunhão com a Natureza, entregue aos próprios pensamentos. O Mestre orava, por certo, e por isso Samuel não se sentia à vontade para interromper esse solilóquio. Um sentimento natural o fazia respeitar esses momentos do Nazareno, que entendia sagrados. Mas, um dia, eis que Samuel já se encontrava na plantação quando o Rabi chegava para sua costumeira meditação.  O dono do olival armou-se de coragem e expôs com franqueza o que lhe ocupava a mente, após cumprimentá-Lo:
– Senhor, muitas vezes te vejo neste jardim em constante ensimesmamento e isso me deixa curioso. Sei que oras ao nosso Deus, mas preferes fazer tuas orações aqui, em vez de procurares o Templo...
Jesus não o deixou terminar, já sabendo o que perturbava Samuel, esclarecendo-o nestes termos:
– Samuel, certamente não desconheces que nosso Pai criou tudo que existe, sendo, portanto, a Natureza o templo onde as criaturas podem reverenciar o Poder criador. Eu vim para dar o testemunho dessa adoração no espírito de simplicidade que deve marcar a relação entre Deus e o homem. Digo-te, além do que já tenho proclamado, que Deus é Espírito e deve ser adorado em espírito e verdade, de modo que os templos de pedra não representam senão o formalismo exagerado dos homens, interessados unicamente em conter em amarras espirituais a livre expressão da fé. Mas dia virá em que a consciência de cada um ditará a melhor forma de bem proceder no contato com a Divindade e nosso Pai será adorado então na intimidade de cada um de seus filhos bem amados.
O Cristo fez breve pausa, auxiliando o entendimento de Seu amigo, e logo acrescentou:
– Ademais, Samuel, não creias fazer diferente, uma vez que o homem louva ao seu Criador nas manifestações do trabalho sincero no respeito às coisas de meu Pai, auxiliando-O na manutenção, renovação e multiplicação dos recursos da Providência em favor das criaturas necessitadas. E também sabes, meu amigo, do que tenho dito aos meus discípulos: eu vim para cumprimento da vontade de meu Pai, de modo que preparo-me para sorver até o fim a taça de amargura que me aguarda muito em breve. O Filho do Homem será vilipendiado por aqueles a quem veio salvar apontando o caminho da renovação espiritual; será execrado e traído em suas afeições e até mesmo vendido como reles mercadoria por aqueles a quem dedicou seu amor; e por fim será expulso do meio deles como se fosse vil doença que contaminasse o corpo social da humanidade inteira... Por isso, Samuel, venho aqui haurir as forças que só em meu Pai posso encontrar, a fim de não fraquejar na dura provação a que me submeto, em nome dAquele que me enviou.
Jesus calou-se, afastando-se para o lugar habitual de suas orações e daquele dia em diante Samuel também passou a ser visto meditando sorumbaticamente no Jardim das Oliveiras...


17 – O pão da alma

“O dever é o mais belo laurel da razão; depende dela como o filho depende de sua mãe. O homem deve amar o dever, não porque o preserve dos males da vida, aos quais a Humanidade não pode se subtrair, mas porque dá à alma o vigor necessário ao seu desenvolvimento.”
(Lázaro, ESE, Cap. XVII, item 7)

Dentre a numerosa multidão que se dispôs a ouvir o sermão do Cristo, naquela tarde inesquecível, estavam Ibrahim e sua esposa, Sara. Ambos ouviram, enlevados, o Rabi proclamar as bem-aventuranças do Reino dos Céus e encheram o coração de doces expectativas quanto ao futuro. Esse encanto, todavia, só não foi maior que o espanto que se lhes apossou da mente desacostumada ao presenciarem Jesus promover a transformação de dois pães e três peixes em alimento suficiente para saciar a fome de centenas e centenas de pessoas estacionadas ao pé do monte.
Ibrahim e Sara comeram do que lhes serviram de cestos repletos, assim como todos os que ali se encontravam, e ainda viram, surpresos, verdadeiramente atônitos, sobrarem doze balaios cheios de pedaços de pão e peixe. Seria essa fartura representativa do Reino dos Céus? – eles se questionavam. Ao cair da tarde, porém, todos voltaram, saciados, a suas casas; alguns meditavam nas palavras ouvidas, sinceramente tocados pelas eloquentes vibrações do verbo vigoroso do Messias, ao passo que outros simplesmente comentavam o fenômeno da multiplicação dos pães e dos peixes.
O casal se incluía entre estes últimos e no caminho para o lar humilde que habitavam, ns cercanias de Cafarnaum, discutiam sobre como teria sido realizado aquele prodígio, afirmando ambos que aquele Jesus devia vir mesmo da parte de Deus e seria então um grande mago, pois só alguém versado em magia poderia operar semelhante façanha. Ou teriam sido, todos eles, vítimas de uma ilusão? Entretanto, os estômagos saciados negavam essa hipótese.
Ibrahim e Sara exultavam e assim passaram a noite. Na manhã seguinte, ainda apresentavam saciedade, mas sabiam que a fome retornaria e, considerando as dificuldades cotidianas para garantir a sobrevivência, ambos decidiram apelar para Jesus, tencionando resolver de uma vez por todas o problema do pão de cada dia. Não poderia Ele lhes ensinar aquele truque? Assim pensando, rumaram para as imediações do lago de Genesaré. No caminho, deram com o Nazareno, que subia para Jerusalém com vários de seus disccípulos e seguidores, dentre os quais havia algumas mulheres. Ibrahim atalhou-lhes a passagem, dirigindo-se ao Cristo, nestes termos, após os cumprimentos iniciais:
– Rabi, minha mulher e eu estivemos contigo ontem, ouvindo-te falar das alegrias do Reino dos Céus, e desejamos te fazer um pedido.
– O que quereis de mim que a bondade de nosso Pai, em nome da Suprema Misericórdia, ainda não vos proporcionou, Ibrahim? – indagou o Mestre, depondo sobre o marido de Sara seu olhar compassivo e penetrante, fazendo-o sentir-se desnudado.
– Senhor – tornou o homem, um tanto desconcertado –, é que vivemos quase na miséria e há ocasiões em que nada encontramos para comer... Poderias, pois, ensinar-nos a realizar o prodígio que observamos ontem? Assim teríamos nossa despensa sempre cheia!...
Jesus deixou que duas lágrimas rolassem de seus olhos lúcidos e, reparando que Pedro postara-se ao Seu lado, falou ao pescador:
– Vê, Simão? As palavras entram pelos ouvidos do homens, mas a verdade ainda não consegue penetrar-lhes o coração para o devido entendimento.
Em seguida, Ele virou-se para Ibrahim e disse, enigmaticamente:
- Ibrahim, filho de Jessé, cuida para que a herança de teu pai não se perca, porque nem só de pão vive o homem, mas também da palavra de Deus, que nos livra dos grilhões materiais, pois nosso Pai quer que o ímpio se salve pelo próprio esforço. Eu venho da parte do Pai de amor e justiça para apontar os caminhos que levam à vida eterna, para que minhas ovelhas não se percam mais nos precipícios das ilusões do mundo. Esqueceste, todavia, das lições que teu pai te deixou?
Dito isso, o Nazareno seguiu viagem com seu grupo, deixando Ibrahim entregue a seus pensamentos, enquanto o próprio lago parecia vazar de seus olhos. Sara acercou-se dele, solícita e curiosa:
– Ibrahim, por que lhe falou Ele de teu pai? A que herança esse Jesus se referia, se a mim mesma nunca disseste nada nesse sentido? Então teu pai te deixou alguns bens?
Ibrahim soluçava a cada interrogação da esposa e foi com dificuldade que respondeu a tais inquirições:
 – Sim, Sara! Ai de mim! Meu pai deixou-me o maior de todos os tesouros. Antes de morrer, ele chamou-me para dizer, ou melhor, para repetir o que vivia me dizendo desde minha meninice: “Ibrahim, meu filho, o bem mais precioso de um homem é o trabalho honesto em favor de si mesmo e dos outros; não te fies nas ilusões deste mundo, porque tudo perece”, era o que falava meu velho pai. E eu me esqueci, Sara, eu me esqueci dessa grande verdade que agora o Rabi vem me recordar. Mas como Ele podia saber de meu pai, que morreu há tanto tempo? Como, Sara? Como?!
Sara nada podia nem sabia o que dizer, limitando-se a consolar o pranto de seu marido...


18 – Ovelhas tresmalhadas

“Jesus se dirigia especialmente aos pobres e deserdados, porque esses é que tinham mais necessidade de consolações – aos cegos dóceis e de boa fé, que querem ver, e não aos orgulhosos, que se presumem possuidores e todas as luzes e de nada mais precisarem.”
(Allan Kardec, ESE, Cap. XXIV, item 12)

As notícias acerca do Messias, assim como causaram alvoroço em parte da população palestina, trazendo esperança para os muito infortunados e alento para os infelizes do corpo e da alma, também proporcionaram expectativas junto àqueles que se rebelavam abertamente contra o domínio de Roma, a tudo dispostos a fazer para expulsar o invasor. Entre esses estava Eliel, filho mais novo do carpinteiro Zacarias, famoso em Betsaida pelos barcos que construía. Eliel era conhecido por sua franca antipatia aos romanos e até mesmo entrara em choque, uma vez, com alguns soldados, somente logrando escapar da prisão pela interferência de seu pai, que subornara o chefe da guarnição antes que a queixa fosse efetivada, caso contrário ele terminaria seus dias nas galés ou escravizado na capital do Império.
Ao saber que Jesus, o profeta nazareno, revelara-se como o Messias das profecias, Eliel animou-se, acreditando que os tempos de subserviência de seu povo terminariam logo, porquanto ao Enviado caberia liderar a luta que libertaria os judeus de tão humilhante situação, conforme a crença comum na Palestina inteira. Decidiu, então, juntar-se ao grupo de seguidores do Rabi, certo de que integraria o exército de revoltosos que enfim expulsaria os invasores da terra que lhes fora dada pelo próprio Deus – pois não foi esse conhecimento a herança recebida de Moisés, o grande patriarca de seus antepassados hebreus? Eliel exultava em sua expectativa...
E foi com esse espírito que ele um dia deixou a casa paterna e dirigiu-se a Corazim, onde sabia haver homens dispostos a tudo para alcançar a tão sonhada libertação. Foi ter com eles e expôs seu plano, não recebendo em troca senão desconfiança, porquanto ali o chefe do bando rebelde afirmara já ter visto Jesus e seu grupo, além de ouvir uma das muitas pregações do profeta, desiludindo-se quanto ao modus operandi do Nazareno. Como era possível convir em amar os inimigos, perdoando-os e desejando-lhes o bem? O que pensar de quem pregava a paz e a concórdia perante um dominador violento que não respeitava nem velhos nem crianças?
Eliel ouvia essas ponderações com um certo ar de decepção, mas pensava poder convencer Jesus quanto aos ideais pátrios e acreditava mesmo que a pregação em nome da paz, conforme lhe falaram os de Corazim, fosse uma estratégia para desviar a atenção dos romanos, o que para ele era uma atitude bastante inteligente do Profeta: quando não esperassem, a uma ordem dEle os grupamentos de revoltosos formados em diversos pontos da Palestina, na Judeia, na Galileia, na Pereia e até em Samaria cairiam sobre os invasores e Israel recobraria seu poder na Terra.
Com a alma inflamada a esse ponto, Eliel propôs ao líder do bando de Corazim enviar uma delegação a Jesus, que ele próprio chefiaria, a fim de melhor se entenderem sobre as ações que deveriam estabelecer no processo de libertação da pátria judaica, sendo atendido em parte. Um dos membros do grupo fora destacado para acompanhar o filho de Zacarias e assim os dois rumaram para Cafarnaum, onde sabiam Jesus ser visto com frequência. Além do mais, o encontro seria melhor realizado ali do que em Jerusalém, devido ao menor número de soldados romanos e espiões a soldo do Império.
Com efeito, Jesus ali se encontrava, fosse ensinando em casa de Simão Pedro, fosse atendendo, junto com seus discípulos, às muitas necessidades da população de leprosos, doentes de várias categorias e famintos do corpo. E foi junto a esses necessitados que Eliel e seu companheiro encontraram o Mestre, logo reconhecendo-O, graças ao carisma que a personalidade do Enviado do Senhor transmitia a quantos o vissem. Eliel esperou que o Rabi terminasse de conversar com uma mulher idosa e então dirigiu-se a Ele:
– Senhor, estamos prontos para te seguir e aguardamos tuas ordens.
Jesus os recebeu com um sorriso e o costumeiro olhar penetrante que a uns inquietava e a outros deixava à vontade, porque confortava.
– Minhas ordens? – indagou, procurando o esclarecimento que não tardou.
– Sim, Senhor – tornou Eliel. – Sabemos que és o Messias que vem libertar Israel e garantir ao nosso povo a supremacia a ele destinada por nosso Deus, quando fez a promessa ao Pai Abraão. Estamos contigo, Senhor, e vamos lutar lado a lado para expulsar o invasor que nos humilha ultrajando nossas mais caras tradições. Estamos a postos em Corazim, Betsaida e Cafarnaum, além de contarmos com apoio popular até mesmo em Jerusalém. Só nos falta uma liderança capaz de impressionar e cativar a participação dos mais dignos representantes de nossa raça. Contamos contigo, Senhor!
O Cristo baixou os olhos para o chão e logo os levantou, trazendo visíveis duas lágrimas que rolaram pelo rosto até se perderem na barba rala. Em seguida, abriu os braços, num gesto largo em que abrangia toda a multidão ao redor, e falou à dupla de revolucionários:
– Aqui estou, em nome de meu Pai, para reunir as ovelhas transviadas, reconduzindo-as de novo ao divino aprisco. Trago-lhes a Verdade que liberta não o corpo, mas a alma, falando do amor que se dirige aos corações sensibilizados pela mensagem de paz e de concórdia que sou Eu mesmo. Por tempo demais os homens, meus bem amados, têm se entregado aos equívocos dos vícios e da violência, desprezando os convites do Altíssimo, algemando-se cada vez mais às ilusões do mundo. Sim, eu proponho a libertação e também condeno a escravidão que sujeita o homem invigilante às vicissitudes da vida material. Mas, em verdade, eu lhes digo: cuidem para que suas ações não resultem em mais grilhões, porquanto se minhas palavras libertam, elas também causarão desentendimento mesmo entre as famílias. Estejam atentos, pois o escândalo, embora necessário para a conscientização das massas, produz também prejuízo para aquele que o promove. Ai de Corazim e de Betsaida, assim como Jerusalém, porque se o Pai derrama de Sua misericórdia sobre os homens, em nome dessa mesma misericórdia Sua mão poderosa poderá se abater sobre eles, não restando então pedra sobre pedra sobre os caminhos do mundo. Eu vim para realizar um juízo, espalhando o fogo da Verdade sobre a terra, e tenho pressa de que ele se acenda nos corações. Vão, e digam isso aos seus chefes, acrescentando que meu reino ainda não é deste mundo.
Eliel e seu companheiro, confusos ante as palavras ouvidas, lançaram mais uma vez o olhar sobre os esfarrapados, famintos e doentes que rodeavam o Cristo e, impressionados com a aura que pressentiam no Nazareno, afastaram-se, para não mais retornar...


19 – Uma moeda a mais

“Eu venho ensinar e consolar os pobres deserdados. Venho dizer-lhes que nivelem a sua resignação com as suas provas; que chorem, pois a dor foi sagrada no Jardim das Oliveiras, mas que esperem, porque virão anjos consoladores lhes enxugar as lágrimas.”
(O Espírito de Verdade, ESE, cap. VI, item 6)

Aqueles eram dias estranhamente perturbadores – assim pensava o velho Ismael, enquanto cofiava as barbas brancas, sentado no alpendre da casa onde morava com a família de seu único filho. A vida, de modo geral, tinha sido boa para ele e só o fato de não padecer na solidão ou na mendicidade já era motivo de grande contentamento. Ismael conhecera muitos concidadãos que ao final da existência experimentaram a ingratidão e o abandono dos familiares, unicamente porque não possuíam bens que lhes pudessem deixar por herança.
A casa era bem próxima do grande lago de Genesaré, também conhecido como Mar da Galileia, onde Ismael desenvolvera o ofício de pescador. Seu filho seguira-lhe os passos nessa profissão, para sua alegria, ajudando-o a manejar as redes. Hoje diríamos que Ismael encontrava-se aposentado, deixando ao filho a incumbência de sustentar a família. Ademais, nosso amigo já não tinha nem força nem jeito para continuar pescando, desde que uma moléstia desconhecida paralisara o lado direito de seu corpo, deixando-o inválido para o trabalho.
Mas por conta de sua atividade Ismael conheceria cada um dos companheiros pescadores que se aventuravam naquelas águas em busca do pão da sobrevivência, mesmo os que residiam nas margens opostas, como era o caso dos irmãos André e Simão, possuidores de um grande e belo barco e que viviam pelos lados de Cafarnaum. Ismael lembrava-se do ímpeto com que principalmente o mais velho deles, Simão, que ficou depois conhecido por Pedro, atirava-se à pesca, como se os peixes tivessem todos de cair em suas redes. Mas, sobretudo, percebera que a partir de certa época ambos pouco compareciam ao trabalho, assim como seus sócios, os jovens Tiago e João, filhos de Zebedeu, deixando o barco aos cuidados de terceiros.
Essa época, Ismael recordava-se bem, foi quando começaram as notícias sobre o Messias, logo após o frenesi em torno do Batista, que às margens do rio Jordão conclamava o povo ao arrependimento porque estaria próximo o Reino dos Céus. Que reino seria esse? – Ismael se perguntava. Ele ouvira falar do episódio em que Pedro, orientado pelo Nazareno, lançara seu anzol no lago e pescara o peixe que trazia na boca duas moedas com as quais foi pago o imposto correspondente a ambos. Ismael ficara profundamente impressionado. Em toda sua vida de pescador, jamais encontrara coisa alguma nas entranhas dos peixes, ao menos daqueles levados para casa.
E, de tanto pensar a respeito desse acontecimento, um dia Ismael tomou a firme decisão de ir a Cafarnaum a fim de entrevistar-se com Pedro. Uma forte curiosidade o impulsionava e ele acreditava que somente seu amigo pescador, ou mesmo Aquele que era visto como o Messias das profecias há tanto tempo esperado, poderia esclarecê-lo. E foi movido por essa grande ansiedade que Ismael convenceu seu filho a levá-lo de barco à margem do lago onde ficava a casa de Pedro.
Uma vez lá chegando, Ismael, na companhia de seu filho, não teve muita dificuldade em localizar a casa de Pedro, posto que uma multidão cercava a moradia, significando tanto que Jesus lá estava quanto não seria fácil entrevistar-se com Ele. Mas o antigo pescador estava decidido e permaneceu ali até que, já bem tarde, as pessoas foram se afastando e a residência principiou a respirar os ares da relativa tranquilidade da noite. O apóstolo então assomou à porta para fechá-la e viu os dois homens à soleira e não sem alguma dificuldade reconheceu seu amigo Ismael, meio oculto pelas sombras noturnas, introduzindo-o na casa incontinenti e apresentando-o a Jesus.
– Que te traz aqui a estas horas, Ismael? Buscas o pão da vida, a água que dessedenta que Deus, nosso Pai, derrama através de mim, ou tua angústia terá outra causa? – perguntou-lhe o Cristo, pousando no velho pescador Seus olhos que desnudavam até mesmo a alma, pois Ismael se sentia assim, com todas as suas mais recônditas fibras remexidas na presença do Filho do Homem.
– Senhor – disse ele, recobrando o ânimo, enquanto Pedro lhe servia um pouco de leite –, é verdade que algo me angustia, sendo um pensamento que julgo apropriado discutir contigo e é que não tenciono continuar sendo um peso para este meu filho que me abriga em seu lar, prodigalizando-me as alegrias de pai e de avô. Sou pobre e a doença levou-me a capacidade para o trabalho que me ocupava no lago, nos velhos tempos. Mas eu soube, Senhor, que fizeste a Pedro encontrar um peixe em cujo ventre havia uma moeda e gostaria...
Ismael interrompera aí suas palavras, pois sua voz embargara e a emoção o fazia tremer, talvez intuindo a impropriedade de seu pedido, mas sentindo, por outro lado, que Jesus é que falaria agora. O Mestre demorou alguns segundos em silêncio e por fim dirigiu-se ao pescador da humilde aldeia de Aim Karim:
– Conforme entendo, tu queres o bastante para viver com segurança os dias que ainda te restam na terra, sem ter perturbada tua tranquilidade nem levar perturbação aos teus ou a qualquer um no mundo. Trata-se, em verdade, de encontrar o tesouro da felicidade sem mácula que não está contido nos estreitos horizontes da matéria, mas na consciência pacificada e comprometida com os mais altos ideais de fraternidade decorrentes da Vontade de nosso amantíssimo Pai que está nos Céus para com todas as Suas criaturas.
Jesus fez breve pausa e ainda devassando a alma confusa de Ismael com Seu olhar compassivo, propôs:
– Digo-te pois, Ismael, que bem melhor que ajuntar tesouros na terra, onde o ladrão rouba, a traça rói e a ferrugem consome, é ajuntá-los no Céu. Aprende de mim, como tantos têm procurado, que sou manso e humilde de coração, e logo verás tuas alegrias multiplicadas a partir da simples quão grandiosa decisão de servir a todos com o que tens à tua disposição. Se não tens mais a força para o trabalho, ainda tens a vontade; se teus braços já não te servem como antes, o amor de nosso Pai te conservou a voz. Os recursos da Bondade Divina para com os homens são inesgotáveis, Ismael, e convém a esses filhos esquecidos despertarem depressa para a Realidade do Reino dos Céus que deve ser construído no ambiente do próprio coração, para que Deus seja adorado em espírito e verdade...


20 – Em primeira pessoa

“Homens fracos, que sabeis em trevas a vossa inteligência, não afasteis o archote que a clemência divina depôs em vossas mãos para esclarecer o vosso caminho e conduzir-vos, filhos perdidos, ao regaço do Pai.”
(O Espírito de Verdade, ESE, Cap. VI, item 5)

E daí que os homens ingratos me pregaram na cruz? Meu amor por eles sempre foi maior que toda a maldade do mundo. E crucifixado no madeiro eu ensinaria a todos mais uma lição – a do desprendimento total, mais do que as que lhes havia ministrado enquanto estava ao seu lado e pude lhes falar sobre deixar pai e mãe, a libertarem-se do jugo opressor do ego, a trocar os valores mais preciosos de sua vida pelas alegrias do Reino de meu Pai através do sacrifício do que os mantém ainda aferrados ao que é perecível e ilusório... Agora, talvez eles compreendessem.
E assim me desfiz de tudo que me ligava ao mundo, meu corpo e minha imagem humana deixei: minha barba rala, os longos cabelos caídos até os ombros, minha tez morena deixei; desfiz-me da carne, dos ossos e do sangue que eram meu corpo e, qual crisálida que enfim se transforma na borboleta – milagre de meu Pai, senhor de toda a Vida! –, abandonei até mesmo o túmulo que guardava meus despojos.
E eis que ela estava lá: a mulher execrada e que me compreendia era a única a confiar na plenitude da vida imortal e por isso guardou na alma minha promessa de retornar no terceiro dia...
No entanto, era preciso adaptar meu corpo imperecível à densa energia material e não permiti que ela me tocasse – também nesse momento eu ensinava o desprendimento, porquanto mais importante que o carinho dos homens é subir à dimensão divina. Pedi-lhe então que fosse proclamar aos outros a Verdade do Reino dos Céus manifestada em Mim mesmo, a realidade do Espírito imortal superior à realidade do mundo com seu cortejo de ilusões.
Talvez agora entendessem o significado de tudo quanto lhes transmiti por ensinamentos e exemplos, fosse usando as figuras fortes das parábolas, fosse vivendo as lições pessoalmente, sob suas vistas incrédulas. Agora o companheiro turrão entenderia o que representa caminhar sobre as águas, enxergando enfim a leveza da alma livre das ilusórias limitações impostas pelo denso corpo de carne, como o mais novo de meus apóstolos já percebia. Talvez assim ele se dispusesse a ser finalmente o pescador de almas que eu lhe havia proposto, juntamente com o irmão.
Assim, desci da cruz da ignomínia dos homens para novamente caminhar ao lado deles, embora ainda insistam em não me reconhecer, crucificando-me outra vez a cada dificuldade encontrada nos caminhos ásperos do mundo, indiferentes ao meu convite de amor, tolerância e fraternidade. Eu lhes ensinei o sacrifício pessoal pelo perdão e pelo amor aos próprios inimigos como forma de vencerem os milenares percalços que eles próprios escolheram na senda da elevação.
A tão temida morte não existe e minha ressurreição deixou isso patente. Oxalá os homens, filhos bem amados de meu Pai, não se demorem na contemplação do que é meramente transitório e despertem com brevidade para a realidade que lhes é própria, a realidade da vida espiritual que é o Reino dos Céus que vim fazer-lhes conhecer, o Reino do Deus bom, justo e misericordioso que espera seus filhos misérrimos de braços abertos em Sua Casa de amor e concórdia, onde habito desde o início dos tempos. Eu vim, pois, para acender o fogo inapagável dessa verdade e tenho pressa de vê-lo aceso na mente e no coração das ovelhas transviadas que o Pai me confiou, as quais espero reunir de novo no divino aprisco...

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