O vinho bom

Francisco Muniz



“Meus amigos, agradecei a Deus o haver permitido que pudésseis gozar a luz do Espiritismo. Não é que somente os que a possuem hajam de ser salvos; é que, ajudando-vos a compreender os ensinos do Cristo, ela vos faz melhores cristãos. Esforçai-vos, pois, para que os vossos irmãos, observando-vos, sejam induzidos a reconhecer que verdadeiro espírita e verdadeiro cristão são uma só e a mesma coisa, dado que todos quantos praticam a caridade são discípulos de Jesus, sem embargo da seita a que pertençam.
(Paulo, o apóstolo, ESE, cap. XV, item 10)

Convém que primeiro eu me apresente, antes de contar minha história. Eu sou Joaquim, filho de Zacarias e moro em Caná da Galileia desde que nasci. Fui um dos garçons que serviram na festa das bodas de Samuel e Ruth, durante a qual deu-se o prodígio que nos espantou a todos. Ainda hoje não entendo o que aconteceu. Bastou a mãe daquele homem dizer-nos que fizéssemos como ele ordenasse e a festa, que praticamente havia acabado, junto com o vinho, tomou outra dimensão, recomeçando com inusitado encanto, porquanto os convidados exultaram ao experimentar o vinho novo que saía das ânforas onde antes havia apenas água. A mesma água com que aquele Jesus mandou-nos encher as talhas.
Como ele fez aquilo? Como a água se transformou em vinho? E por que jamais se provou vinho igual? – sim, pergunto isso porque também eu bebi um pouco desse vinho e afirmo que nenhum dos que provei após aquela festa apresentou qualidade ao menos parecida. Era um vinho tão bom que por mais que o bebêssemos não nos embriagávamos! Fiquei intrigado e resolvi seguir aquele homem, para de alguma forma compreender sua magia, pois só pode ter sido mágica aquela façanha. Quem era aquele homem, aquele Jesus capaz de realizar o que somente nosso pai Moisés fez, para libertar nossos antepassados da escravidão no Egito? Resolvi que eu iria descobrir. E é aqui que começa minha história, a história de um seguidor desconfiado que depois...
Bem, eu o segui, como disse, depois de me despedir de meus pais e meus irmãos, levando apenas alguns poucos suprimentos. Quando Ele e seu pequeno grupo deixaram Caná, vi que sua mãe os acompanhava e deduzi que fossem seus familiares. Concluí que estivessem voltando à não muito distante Nazaré e isto me contentou, pois não teria de andar em demasia. Mantive-me a certa distância deles, mas observei que em determinado momento um rapazinho ao lado de Jesus virou-se e apontou para mim, certamente denunciando-me. No entanto, nada aconteceu, ninguém se importou com o fato de que eu estivesse caminhando atrás deles e durante todo o trajeto até Nazaré nenhum outro olhar se virou em minha direção.
Já na pequena cidade, mantive-me nas proximidades da casa onde se refugiaram e não precisei esperar muito até que Jesus saiu, dirigindo-se à Sinagoga, levando com ele um grupo bem menor. Postei-me à porta e o vi dirigir-se ao púlpito para ler nas Escrituras os vaticínios do Profeta Isaías sobre a vinda do tão aguardado Messias, que viria libertar Israel do domínio dos conquistadores estrangeiros e dar ao nosso povo a condução do mundo, pois sabíamos ser, desde muito tempo, os escolhidos por Deus para disseminar Seu santo nome pelas eras a fora, como Ele dissera ao nosso Pai Abraão. Então Jesus leu a profecia e fechou o Livro, dizendo com toda naturalidade que naquele dia se cumpriam aquelas palavras.
Como?
Sim, do mesmo modo que eu não entendi, os homens ali presentes, os próprios concidadãos de Jesus ficaram perplexos e começaram a discutir uns com os outros até que por fim se indispuseram com o filho daquela gentil Maria, porque não aceitaram o que ouviram de seus lábios. Falavam alto, gesticulavam, com raiva e violência, apontando para aquele homem corajoso que se manteve calmo e com toda a tranquilidade do mundo passou em meio à turba exaltada, deixando a Sinagoga com seu pequeno séquito e tomando o rumo da saída de Nazaré, recebendo os impropérios e mesmo algumas pedras que atiraram contra Ele. Quando o furor se dissipou, corri para alcançar Jesus e seus seguidores, encontrando-os não muito distantes. Na verdade, andavam tão devagar que era como se me esperassem chegar.
Ele me dirigiu a palavra:
– Demoraste, Joaquim. Se queres, de fato, aprender de mim, que sou manso e humilde de coração, convém te aproximes mais um pouco. Vem conosco, para que teus olhos vejam a Verdade do Reino dos Céus e tua boca a pronuncie no momento certo.
Juntei-me, assombrado, ao grupo dos discípulos e pude assim observar o que Jesus, autonomeando-se o Filho do Homem, realizava em nome de Deus, o Deus de Isaac e Jacó que agora Ele chamava de Pai, propositalmente ignorando que para nós, desde Moisés, esse Deus era o Senhor cruel e vingativo que nos impelia ao extermínio dos inimigos de nossa raça e certamente nos faria expulsar os romanos invasores que nos escravizavam em nossas próprias terras. No entanto, Jesus pregava, em nome desse Deus-Pai, o perdão aos inimigos, que devíamos ter para com eles amor e misericórdia... e eu ainda não entendia.
Eu estava com eles no dia em que Jesus viu-se rodeado por uma grande multidão e, após ter-lhes falado palavras belíssimas do alto de um monte durante várias horas, propôs alimentar aquelas pessoas. Mas quem tinha algo para comer tinha apenas pouca coisa e então prontifiquei-me, oferecendo os dois pães que me restavam. Um dos companheiros de Jesus que era pescador apresentou-lhe três peixes cozidos e conservados para grandes viagens e foi só. Mas aquele homem enigmático aceitou aquelas oferendas e pediu-nos que juntássemos alguns cestos, nos quais ele quebrava os pães e os peixes em pedacinhos e, acreditem!, os cestos ficaram cheios e do conteúdo todo mundo comeu, ficando saciados – eram milhares de pessoas!
De outra feita, caminhava com eles quando um homem cego – de nascença, segundo disseram – foi apresentado a Jesus para que o curasse e ele visse a luz do dia pela primeira vez em sua vida. Sabem o que Ele fez? Cuspiu no chão e depois tomou a terra cuspida nas mãos, misturou-a com um dedo e aplicou a mistura sobre os olhos sem vida daquele cego, mandando-o em seguida que os abrisse. Feito isso, o cego – Bartimeu era seu nome, soube depois – sorriu e chorou, pois via tudo em volta, e assim prostrou-se aos pés de Jesus, agradecido. Quando ele se foi, levando consigo a alegria daquele momento sublime, os companheiros do Rabi – agora eu já podia chamá-lo assim! – o questionaram, perguntando se aquele homem ou seus pais haviam pecado para que ele nascesse cego. Entretanto, Jesus disse apenas que não havia pecado na história, porquanto Bartimeu tinha nascido somente para dar testemunho do Reino dos Céus.
Eu não compreendi essa explicação, mas observei, durante o tempo que caminhei ao Seu lado, que Jesus não perdia ocasião para ensinar, doando-se de boa vontade a quem o procurasse, até mesmo àqueles fariseus pomposos que não gostavam dele e o confrontavam com as tradições de nosso povo, as quais o dito Filho do Homem procurava renovar com o ensinamento do que Ele dizia ser a Verdade: “Ouvistes o que foi dito, eu porém vos digo...” Então não eram verdadeiras as lições e as leis de Moisés e dos antigos profetas de nossa gente? Mas era assim que Jesus ensinava e desejava que entendêssemos. Mas como entender o que ele dizia e fazia? Eram coisas assombrosas, pois até mesmo os mortos ele trazia de volta, como vi com meus próprios olhos em duas oportunidades!
Eu pensava nessas coisas todas, certa noite, meditando nas contradições entre os ensinos novos e antigos, bem como nos prodígios realizados por esse Jesus e naqueles narrados nas Escrituras e protagonizados por Elias e Moisés, quando o Rabi, parecendo ler meus pensamentos, aproximou-se de mim e falou:

– Ainda não compreendes, Joaquim? E, no entanto, tu bebeste daquele vinho em Caná. Aprende que foi para isto que vim ao mundo, por ordem de meu Pai, para dispensar um vinho mais saboroso a todos os homens, a fim de que despertem para o sentido da vida em razão do futuro que os aguarda como filhos bem amados de Deus. Vê bem, Joaquim: os homens vivem perdidos nas trevas da própria ignorância, pois não compreendem o que veem e o que escutam, negando a verdade diante de seus olhos pelo costume do passado. Dia virá em que maldirão terem desprezado estes momentos preciosos de minha presença junto a eles. Mas é necessário que assim seja, para que se cumpram as profecias e todos entendam, enfim, que eu venho da parte de meu Pai para oferecer mão segura àqueles que, vendo a luz do Alto, teimam em permanecer no abismo das sombras. Aprende, ainda, que eu vim trazer a água viva que dessedenta por completo, para que os homens, insaciáveis, possam por si mesmos transformá-la no vinho bom que tornará mais saborosos os relacionamentos, fortalecendo-os no poder do amor que liberta e conclama à união das almas em torno da Vontade do Altíssimo...

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