A Bíblia como ela não é

(prefácio ao livro “A Bíblia à moda da casa”, de Paulo Neto)
Francisco Muniz

 


Nos anos 1970 do século XX, o escritor Terça-Feira Lobsang Rampa, pseudônimo de um médico inglês que se dizia a encarnação de um monge tibetano, fez bastante sucesso com uma série de livros em que apresentava conceitos científico-filosófico-religiosos assaz interessantes ao ponto de mobilizar a opinião pública. Se hoje seus ensinamentos – que Rampa considerava verdadeiros (e compete-nos a todos analisá-los fria e profundamente para se chegar a essa conclusão) – estão esquecidos, é que grande parte do mundo ocidental se pauta, lamentavelmente, por critérios materialistas que bem pouco ajudam no entendimento dos temas próprios da espiritualidade.
Um desses conceitos defendidos “cientificamente” por  Lobsang Rampa é justamente a reencarnação, princípio que muitos se recusam a aceitar, principalmente os religiosos sistemáticos, sob o argumento de que certas passagens bíblicas apontam para rumo contrário a esse entendimento. “Ao homem foi ordenado morrer uma só vez”, dizem, sem atentar para o fato de que, apesar da ordem de morrer uma única vez, é forçoso também renascermos tantas vezes sejam necessárias para nosso aperfeiçoamento espiritual. Mas é uma questão de tempo até todos estarmos de acordo em relação a esse ponto.
Voltemos a Rampa, que em seu livro Luz de Vela (Record, 1973, 6ª ed.) diz textualmente: “Cristo também ensinava a reencarnação e, se as pessoas que leem a Bíblia a lessem de espírito esclarecido (grifo nosso), entenderiam todas essas coisas”. Muitos outros autores, leigos ou não, têm dito a mesma coisa, mas citamos Rampa justamente porque em sua obra ele, sem ser espírita, toca num aspecto há muito martelado pelos estudiosos do Espiritismo, para o qual os religiosos sistemáticos fecham olhos e ouvidos: o da sucessiva transliteração do chamado “livro sagrado” ao longo dos tempos, atendendo a interesses de grupos poderosos em detrimento do ensino da Verdade.
No mesmo trecho de seu livro citado, Rampa pondera: “Também deviam levar em consideração o fato positivo de que a Bíblia agora não é como originariamente, nem era para ser. A Bíblia foi traduzida, retraduzida, mal traduzida, refeita e publicada em milhares de edições”. Cegas e surdas aos apelos esclarecedores, as pessoas se deixam levar pela fantasia criada por quem as quer no caminho do atraso e da ignorância e, qual rebanho sem condutor firme, seguem quem está à frente em direção ao abismo. “A Bíblia”, diz Rampa, “deveria ser considerada uma declaração geral de política e não um relato detalhado do que aconteceu. É um livro bastante bom, mas a pessoa tem de usar o bom senso ao ler um livro que é tão velho e tão diferente, em concepção, do que foi planejado originariamente”.
Se Lobsang Rampa não serve aos propósitos de esclarecimento, pelo peso religioso (ou místico, diriam alguns) de seus escritos, observemos os leigos. A revista Superinteressante (Ed. Abril) de agosto deste ano [2000], em reportagem intitulada “A doutrina do deserto”, sobre os essênios, trata do trabalho do pesquisador húngaro Edmond Szekely, que em 1923 obteve permissão para revolver os arquivos secretos do Vaticano. Szekely “estava à procura de livros que teriam influenciado São Francisco de Assis. Curioso e encantado, vagou pelos mais de 40 quilômetros de estantes com pergaminhos e papiros milenares. Viu evangelhos nunca publicados e manuscritos originais de muitos santos e apóstolos, condenados a permanecer escondidos para sempre”. Suponhamos que tais documentos tenham feito parte, algum dia, da Bíblia original...
A mesma reportagem cita ainda a alegria do reverendo inglês Gideon Ouseley, que em fins do século XIX (1880, mais exatamente) encontrou num monastério budista da Índia um manuscrito chamado O evangelho dos doze santos, escrito em aramaico – a língua que Jesus falava. “Ouseley ficou eufórico e saiu espalhando que tinha descoberto o verdadeiro Novo Testamento. Afirmava que a Bíblia estava incorreta, pois Jesus era um essênio que defendia a reencarnação e o vegetarianismo.” Sem defender a informação acerca do envolvimento de Jesus com os essênios, seita judaica existente ao tempo do Messias, é bom frisarmos que, conforme o artigo, o reverendo pagou um preço muito alto por sua descoberta: em plena era vitoriana, suas palavras desagradaram os conservadores e este atearam fogo em sua casa, destruindo o original daquele “evangelho”.
Tudo isso mostra a dificuldade em se jogar luzes sobre a Verdade, o que o Espiritismo tem por missão realizar.
Eis aqui, pois, uma colaboração ao entendimento de temas religiosos dos mais necessários. A compreensão que se espera ter da Bíblia é pré-requisito indispensável nos questionamentos feitos no âmbito dos grupos de estudo espíritas, nos quais parte dos frequentadores é oriunda ou influenciada pelos conceitos gerados nos grupamentos católico e protestante e, por isso, ainda condicionados a uma visão peculiar a respeito do chamado livro sagrado.

Escrita de maneira notavelmente didática, esta obra de Paulo da Silva Neto Sobrinho – fruto do esforço desenvolvido sob a inspiração do Alto, acreditamos, tal a simplicidade que ele conseguiu imprimir em seu trabalho – em muito contribuirá para a leitura e entendimento da Bíblia de maneira desapaixonada, mas presa ao amor da busca pela verdade que anima o estudioso consciente de suas responsabilidades e da importância do trabalho que tem a desempenhar. 

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