Natal e privilégios

Francisco Muniz
(publicado originalmente no jornal Tribuna Espírita de Salvador n.° 15)

“Se o plano superior já te permite pisar na Seara Espírita, não te limites à prece.” (Emmanuel) [5]

Eis que é de novo Natal e o Homem vem mais uma vez meditar acerca do Cristo, relembrando o nascimento do menino Jesus na simplicidade da manjedoura, fato que por si só deveria lançar-nos a projetos diferenciados dos que temos abrigado na mente e no peito. Talvez não haja, na História, exemplo mais expressivo do convite à reforma interior e, pela compreensão dos ensinamentos cristãos/evangélicos, à renúncia de si mesmo como forma de, com brevidade, realizar a construção do Reino de Deus no coração de cada um. Significa tomar para si a túnica do servidor e abrir mão dos privilégios e recompensas pretendidos por quem acredita que todo trabalho deva ter reconhecimento.
No capítulo 20 do Evangelho de Mateus [4], os versículos 20 a 23 tratam de uma interessantíssima conversa que Jesus teve com Salomé, a mãe dos apóstolos João e Tiago. Era desejo dela que o Mestre concedesse destaque a seus filhos, não no panorama ilusório do mundo, mas no próprio Reino do Senhor. “Não sabeis o que pedis”, Ele repostou, para afinal explicar que “o Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir”.
É próprio da natureza humana, marcada por uma estreita, pequena compreensão de sua natureza espiritual, ansiar pelos privilégios e honrarias, colocando-se o Homem na condição de julgar-se merecedor de todas as benesses a despeito mesmo das necessidades de seus semelhantes. E ainda que o Cristo tenha vindo pessoalmente indicar o caminho mais seguro para se alcançar tais benefícios, o egoísmo, ou seja, o culto de si mesmo empana a consciência de si e o Homem, então, gira seguidamente em torno dele próprio, repetindo experiências até finalmente despertar para a verdade e integrar-se ao pensamento renovador.
A vontade tem papel preponderante nesse processo e por isso o ser precisa estar consciente sempre do que quer, a fim de encontrar-se bem conduzido no caminho que deve percorrer com vistas à própria elevação, que em suma representa a libertação das ilusões da matéria. “O objetivo maior da vida é despertar em cada um de nós os valores que o Pai nos deu para cultivar”, diz o Espírito Irmão Jerônimo [1], mentor do Centro Espírita Deus, Luz e Verdade. Segundo esse orientador espiritual, “muitas pessoas deixaram de ser escravas dos homens. Entretanto, continuam sendo escravas do pensamento, o que é bem pior”. Devemos compreender, então, que ele se refere ao pensamento desagregador, posto que inferior e distante daquele objetivo sublime.
O filósofo Huberto Rohden [3] identifica três espécies de homens: o profano, o asceta e o espiritual. Do primeiro, citando Santo Agostinho, diz que “é um cego que corre vigorosamente, mas sem saber para onde – magni passus extra viam, grandes passos... fora do caminho”. O asceta, por seu turno, “é um vidente que, paralisado de medo, prefere recolher-se a uma caverna, longe das maldades do mundo”. Já o homem espiritual “é um vidente que anda seguro e firme nos caminhos do mundo profano, sem se profanar, mas irradiando para seus semelhantes a luz da sua vidência e a força da sua santidade”.
Vemos aí o que pode ser o querer do homem enquanto realiza sua ascensão espiritual, que é algo além do desejo que marca a fase inicial da evolução dos seres e deve se aproximar do esforço consciente que chamamos aspiração, para a realização do reino de Deus no próprio coração, conforme nos convida o Cristo. Ainda segundo Rohden [2], esse algo além é o dever, a que o homem profano foge trocando-o pelo prazer. “O querer o prazer é do ego”, ressalta o filósofo, apontando para um conflito entre querer e dever, “porque o homem não harmonizou ainda o seu ego externo com o seu Eu interno”. Para Rohden, “enquanto o querer do ego está em conflito com o dever do Eu, o homem é infeliz, e tenta sufocar sua infelicidade com toda espécie de prazeres e paliativos”.
Refletir sobre nós mesmos a partir de tais parâmetros será importante para vivermos cotidianamente o verdadeiro Natal do Cristo, colocando-nos na posição do servidor de todos, conforme Sua conclamação.

Fontes:
1. Santana, Bernadete de Oliveira. Querer é Poder (pelo Espírito Irmão Jerônimo).
2. Rohden, Huberto. A Experiência Cósmica. Martin Claret.
3. ______. Profanos e Iniciados. Alvorada.
4. A Bíblia de Jerusalém. Paulinas.
5. Agenda Renascer 2009. EME.

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