Uma certa encíclica papal

Francisco Muniz
(publicado originalmente na revista Espírita n.° 8 - Ano I - Novembro de 1998)

Ao completar 20 anos de pontificado (em 1998), o papa João Paulo II, então líder de uma das maiores correntes religiosas do planeta, lançou uma encíclica que aproximou ainda mais o pensamento católico dos postulados do Espiritismo.

O Espírito foi criado simples e ignorante e recebeu do Criador as armas (recursos) necessárias para seu enriquecimento íntimo. Com a inteligência e o livre-arbítrio o homem pode fazer escolhas que lhe dão alegrias ou dores, e à medida que ele adquire conhecimentos proporciona-se alegrias, ao passo que quanto mais se submete aos rigores da ignorância, mais dores coleciona. O pior inimigo do homem, pois, é a ignorância, defeito que deve ser superado com todas as forças, se ele quer atingir o melhoramento moral e intelectual. Não é outro o ensinamento do Espiritismo, que propõe a renovação espiritual do homem através da educação, significando a transformação de valores morais que objetivem a superação das imperfeições humanas.
Consciente de que é um ser inteligente criado, o Espírito demonstra, por isso, a fé no ente criador; e pela razão, produto de sua inteligência, questiona todas as implicações decorrentes dessa criação. A razão e a fé, assim, são dois instrumentos da elevação espiritual e não podem andar dissociadas, posto que uma complementa a outra, fortalecendo-se ambas mutuamente. "Fé inabalável", já dizia Allan Kardec, "só é aquela que consegue encarar a razão em todas as épocas da Humanidade". O Codificador reportava-se naturalmente aos conhecimentos que o homem adquire pela ciência e pela religião, as duas vertentes do saber humano que tanto cativam os filósofos.
Não surpreende, portanto, que o papa João Paulo II tenha se debruçado, agora, sobre a fé e a razão para consubstanciar sua nova encíclica, a 13.ª de seu pontificado, o mais duradouro deste século (o XX). No texto de sua encíclica, João Paulo II faz uma defesa da filosofia, da fé e da razão contra o irracionalismo e o pensamento sem embasamento científico. Segundo o documento, que representa "uma posição firma da Igreja diante do perigoso vazio de ideais da sociedade moderna", a intenção do líder católico é oferecer um ponto de diálogo entre crentes e ateus que buscam as mesmas respostas fundamentais da vida, tais como estas: de onde viemos? quem somos? o que acontece após a morte? São questões há muito respondidas pelo Espiritismo, que veio inaugurar, há mais de 140 anos, com Kardec, uma nova era para a humanidade - a era do espírito.
"A razão e a fé se  empobreceram e tornaram-se fracas uma diante da outra", relata João Paulo II, referindo-se aos tempos atuais, complementando: "A razão curvou-se sobre si própria tornando-se aos poucos incapaz de levantar os olhos para o alto e ousar a conquista da verdade do ser". Dessa incapacidade surgiram as várias formas de agnosticismo e relativismo que fizeram com que a pesquisa filosófica se perdesse num ceticismo generalizado, ressalta o papa. Mas, dizemos nós, tal só ocorreu porque os pensadores elegeram o materialismo como regra filosófica, desprezando o componente transcendental do saber humano, a despeito da inclinação dos homens para a religiosidade.
Somente a fé - que é algo instintivo - não é capaz de tornar o homem apto a compreender sua herança divina, tanto quanto exclusivamente a razão é insuficiente para nos dar a percepção de quem somos verdadeiramente. Se nos pautarmos apenas pela fé, cegamente, corremos o risco de nos perdermos pelo fanatismo, porque "a fé cega impõe ao homem que abdique da própria razão", ainda no entender de Kardec, para quem o Espiritismo considera sem raiz toda fé imposta. Por outro lado, o uso exclusivo da razão faz-nos cair no abismo do ceticismo, jardim da cultura materialista.
A fé, assim, deve ser inteligentemente vivenciada, o que significa fazer esforços razoáveis no sentido de se compreender as duas naturezas do homem, a material e a espiritual. Isso é o que o papa João Paulo II adverte ao dizer em sua encíclica que a filosofia é "o caminho para conhecer verdades fundamentais sobre a existência do homem e indispensável para aprofundar a inteligência da fé". Mas somente a filosofia é insuficiente para encontrar as respostas necessárias a tal entendimento e vai buscar na ciência sua contraparte complementar. É então que o Espiritismo, fincado no tripé ciência, filosofia e religião, apresenta-se como coadjuvante nessa busca.
Sabemos que o Espiritismo é bem menos religião que filosofia e ciência e já se disse que a Doutrina Espírita "não é a religião do futuro, mas o futuro das religiões" (Léon Denis). Se um dia os homens compreenderão que os postulados espíritas se ajustam à necessidade de melhoramento da Humanidade, é certo que essa compreensão só se dará na medida em que a fé se fortaleça em cada um, lado a lado com a razão. Porque, se é necessário separar o joio do trigo, é preciso também que um cresça junto ao outro até que chegue o momento da colheita, como bem explicou o Cristo Jesus.

Liderança carismática

Os 20 anos do pontificado de João Paulo II, pseudônimo adotado pelo cardeal polonês Karol Wojtila, passarão à história não apenas por ser o mais longo, mas também pelas transformações que a Igreja Católica promoveu no mundo, fossem elas de certa forma negativas, como o freio na "opção preferencial pelos pobres" idealizada pela Teologia da Libertação, ou positivas, a exemplo do movimento Renovação Carismática Católica. De qualquer forma, o papa emprestou seu carisma à face deste final de século, reforçado principalmente ao escapar do atentado que sofreu na Itália apenas dois anos depois de ocupar a cadeira de Sumo Pontífice no Vaticano e pelo hábito de beijar o chão dos muitos países que visitou, costume só abolido em função de sua idade.
Mas é com a Renovação Carismática que o catolicismo chefiado por João Paulo II encontra sua faceta mais de acordo com os novos tempos. A insatisfação coletiva que significava rebeldia nos anos 60 abeirou-se da religião católica e fez dela um espetáculo, dando novo colorido e sonoridade à missa. À parte o modismo que afeta os movimentos novidadeiros (apesar de ter sido iniciado nos anos 60, os Estados Unidos, só recentemente a Renovação Carismática tomou conta das igrejas brasileiras), vale notar o quanto, nesse aspecto, os princípios do Cristianismo primitivo voltam a estar presentes na Igreja, através dos fenômenos espíritas: o contato com entidades espirituais, nos transes de invocação do "Espírito Santo" e nas tentativas de cura pela imposição das mãos, por exemplo.
O movimento carismático, a bem dizer, trouxe alento a milhares de jovens que, graças à religião, estão fugindo das drogas e do vazio existencial em que se transformou a vida nas grandes cidades para abraçar um comportamento pautado na moral, como a afirmar que a construção do futuro exige pensar no auxílio divino. E o papa João Paulo II é o líder espiritual dessa renovação de pensamento no seio do catolicismo, como os próprios carismáticos proclamam.

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