Tributo a Raul Seixas

Francisco Muniz

(Matéria publicada no número 17 - Ano 2 (1999) - da revista Visão Espírita.)

Os negócios iam mal para aquele comerciante goiano no decorrer de 1995. As dívidas aumentavam, os credores não davam trégua e a falência de seu estabelecimento era iminente. A esperança em que as coisas melhorassem aos poucos se esvaía até que, tom ado de maus pensamentos, ele revolveu dar cabo da própria vida, acreditando que, assim, eliminaria seus problemas de uma vez por todas. Decidido, fez toda a preparação de seus últimos momentos: deixou bilhetes para os familiares explicando as razões de seu gesto extremo e, à maneira de uma cerimônia qualquer, carregou o revólver, depositou-o sobre a mesa, fechou as cortinas e, para que ninguém ouvisse o estampido, resolveu por uma música para tocar. Escolheu um disco aleatoriamente e ligou a vitrola. Os sons da melodia invadiram a sala, enquanto o homem se entregava a seus pensamentos destrutivos... De repente, a letra da música o tomou de assalto: "...Não diga que a vitória está perdida, pois é de batalhas que se vive a vida - tente outra vez!"
O comerciante subitamente retomou a razão e viu o absurdo que estava prestes a cometer. Prestando melhor atenção na música que tocava, reconheceu a voz e a composição de Raul Seixas, desencarnado seis anos antes, e então o homem chorou. Em meio ao pranto, os pensamentos surgiam descontrolados, mas uma coisa ele parecia ter certeza: a bondade divina certamente utilizou a mensagem de Raul Seixas para fazê-lo mudar de ideia quanto a dar fim à própria vida. Entendeu que devia isso a Deus e a Raul e que das formas de agradecer seria externar sua história à mãe do compositor baiano...

Maria Eugênia Seixas conta essa e outras histórias com a voz embargada pela emoção. São tantos os depoimentos de pessoas que têm o que contar sobre o que seu filho representou e ainda representa para elas que esta mãe, embora tenha se contentado, não se surpreendeu com a narrativa do livro Um roqueiro no Além, obra mediúnica ditada ao escritor Nelson Moraes pelo Espírito Zìlio, identificado como o compositor de "Ouro de tolo". O volume, recebido com um autógrafo de autor, transformou-se num dos livros preferidos de Maria Eugênia, que reconheceu em Zílio muitas características de seu filho Raulzito, assim chamado para se estabelecer uma diferenciação, já que o artista tinha o mesmo nome do pai e do avô. "O mais interessante é que muita coisa dita no livro nunca tinha sido publicada", disse a mãe ainda saudosa, passados dez anos da desencarnação de Raul.
Quem também se emocionou coim os relatos do Espírito Zílio foi Thildo Gama, amigo de infância de Raul Seixas e um de seus primeiros companheiros de lides musicais. Thildo, hoje presidente em Salvador de um dos muitos fã-clubes do compositor espalhado por este Brasil, diz estar convicto de que Zílio é a personalidade espiritual que revestiu a forma de Raul em sua última encarnação. Espírita nascido em berço espírita, Thildo revela que sua convicção cresceu em função de duas mensagens mediúnicas que ele recebera em junho e julho de 1997, através de um outro médium paulista. Numa delas, Raul pede que o amigo continue fazendo o trabalho de divulgação de sua obra artística. Não por acaso, essa é a atividade a que Thilde se propôs desde que abandonou o segundo grupo criado por Raul, o "Raulzito e seus Panteras", tendo publicado dois livros sobre a carreira do amigo e ídolo que já venderam 25 mil exemplares.
Na outra mensagem, segundo Thildo, Raul se dirige também á própria mãe, a quem pede desculpas por ter sido um filho tão "desastrado" a ponto de se perder no turbilhão do vício, principalmente o alcoolismo. Esse aspecto da vida de Raul é que leva Thildo a fazer uma - e apenas uma - restrição ao livro Um roqueiro no Além. Ele acha que Sílio pode ter mentido quando diz que Raul, em seus últimos dias, estava se drogando nos pés. Com a autoridade de um amigo de longas datas, Thildo afirma que Raul tinha horror a injeção e jamais tomou drogas injetáveis. Inclusive, acredita, esse medo pode ter sido uma das causas da morte de Raul, que, diabético, nem mesmo se aplicava a insulina necessária ao bom funcionamento do organismo físico.
Mas o mesmo Raul que se drogava era o Raul que combatia o vício, principalmente nos outros, conforme se recorda Maria Eugênia. Ela conta que seu filho fora procurado uma vez por um fã de Salvador, que se identificou como usuário e traficante de drogas, recebendo de Raul o conselho de trocar essa vida tão improdutiva quanto prejudicial por algo realmente útil: que ele se matriculasse numa escola e, estudando, construísse um futuro mais promissor. Os acontecimentos se sucederam na estrada do tempo e certo dia, quando se encontrava no leito de doente de seu marido, cerca de quatro anos atrás, Maria Eugênia viu entrar no quarto do Hospital Português, em Salvador, um homem negro, com os cabelos á moda rastafari. Era aquele a quem Raulzito aconselhara, a lhe dizer que realmente havia deixado as drogas e optara pelo mestudo e hoje é proprietário de uma lanchonete no centro de Salvador. Era mais um a se deixar influenciar pelas mensagens construtivas de seu filho, emociona-se.
Católica, Maria Eugênia Seixas diz acreditar que seu filho esteja plenamente adaptado à nova realidade espiritual, mas se incomoda um pouco com o comportamento dos fãs de Raul: "Às vezes, fico pensando comigo: será que essas manifestações todas que fazem para Raulzito não o perturbam, ele que está lá, quieto, sossegado, na outra vida? O pessoal fica a fazer essa euforia toda, fazendo dele um deus... eu sou contra isso, mas não posso falar, não posso divulgar isso em revistas comuns, dizer às pessoas que endeusam Raul que sou contra isso. Acho que tais manifestações têm muito de exagero capaz de perturbar o pobre do espírito que está lá, coitado, sossegado, que já deve ter, pelo tempo, pago os pecados cometidos aqui". Que pecados seriam esses? Ela explica: "Ele foi um pecador como todos nós e talvez um pouquinho mais. Ele saiu um pouco das normas de nossa sociedade atual, ele ultrapassou, fez coisas erradas, na nossa concepção, mas, para um artista... eu penso que um artista tem o espírito, a alma muito sensível, à flor da pele: qualquer coisa para ele é mais do que para nós".
Foi o livre arbítrio que fez Raul se desviar da rota, salienta Thildo Gama, acrescentando que Paulo Coelho, antigo parceiro de Raulzito, teve alguma participação nesse desvio, por tê-lo encaminhado no interesse por magia negra, sociedades herméticas etc. "Raul não soube administrar isso", diz Thildo, revelando que vem daí a crença de seu amigo na "sociedade alternativa" que deu nome a uma de suas composições mais famosas. Paulo Coelho, segundo Thildo, declararia depois que a sociedade alternativa, onde se poderia fazer tudoi que se quisesse porque tudo era "da lei" - conforme reza a letra da canção -, era uma utopia. "Mas Raul acreditou nisso até o fim e pretendia fundar uma certa Cidade da Luz em Minas Gerais", revela o amigo baiano do cantor.
Como mãe, Maria Eugênia Seixas percebia em Raul essas inquietações metafísicas e às vezes se preocupava, embora procurasse sempre respeitar o que chama de "loucuras" de seu filho. "Ele falava que cada um de nós tem um deus em seu coração e que cada um pensasse da forma que quisesse, que tudo valia, como naquela música que ele fez", diz ela, referindo-se à mesma "Sociedade alternativa". Essas ideias ainda impressionam e cativam uma legião de fãs cada vez maior, principalmente junto á camada mais jovem da população brasileira, levando Thildo Gama a acreditar que haja pelo menos um milhão de pessoas no País que consomem tudo relacionado a Raul Seixas à disposição no mercado.
Essa febre em torno do nome Raul Seixas representa, segundo o ex-músico, "a decodificação da mensagem de Raulzito".Até mesmo o senador Antonio Carlos Magalhães, presidente do Senado, declarou-se "fã ardoroso" do maluco Beleza. ACM, diz Thildo, teria se comprometido a instalar no Pelourinho um museu homenageando Raul. A efervescência cada vez mais crescente que mitifica Raul Seixas faz surgir também muito folclore envolvendo a figura do ídolo. Todo fã que se sinta mais identificado com Raul tem uma história "diferente" para contar, principalmente em função da composição "Tente outra vez", que é, segundo Thildo, uma "música de auto-ajuda" contida no mais místico dos discos de Raul, intitulado "Novo aeon".
Raul era, ainda, um filantropo, um homem que, se não inteiramente comprometido com a caridade, era capaz de gestos desprendidos em favor do próximo, como atesta Thildo Gama: "Raul era altruísta; uma vez tirou do corpo um casaco de US$800 para cobrir um mendigo numa rua de São Paulo, ante a revolta de sua mulher". PAra Raul isso não era nada, porque poderia comprar outro blusão igual ou mais caro, diz o amigo. "Agora, na Espiritualidade, ele está no caminho certo, ajudando as pessoas, assim como ajudou e ajuda, ainda, aqui na Terra, com suas mensagens", acredita Thildo Gama.

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